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'Mato Seco em Chamas' é fantasia política radical e mostra a força do cinema

Adirley Queirós e Joana Pimenta lembram 'Mad Max' ao atacar polarização em torno do petróleo com gangue feminina

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Mato Seco em Chamas

  • Quando Estreia nesta quinta (23), nos cinemas
  • Elenco Léa Alves da Silva, Débora Alencar e Joana Darc Furtado
  • Produção Brasil, Portugal, 2022
  • Direção Adirley Queirós e Joana Pimenta

Foi um choque quando Adirley Queirós despontou na cena do cinema brasileiro, primeiro com curtas-metragens e depois com longas, como "A Cidade É Uma Só", de 2011, que trata do processo de exclusão territorial que marca o nascimento de Ceilândia, na periferia de Brasília, e "Branco Sai, Preto Fica", de 2014, história de um massacre ocorrido num baile de black music.

Cena do filme "Mato Seco em Chamas", de Adirley Queirós e Joana Pimenta
Cena do filme "Mato Seco em Chamas", de Adirley Queirós e Joana Pimenta - Divulgação

Seus filmes trazem uma combinação original e cortante de humor ácido e crítica social, ficção e documentário, cinema de gênero e militância política. Primeira parceria na direção com a portuguesa Joana Pimenta, "Mato Seco em Chamas" eleva todos esses elementos à máxima potência.

É o título mais longo da filmografia de Adirley Queirós, com mais de 150 minutos, e também o mais feminista. Ambientada na comunidade de Sol Nascente, em Ceilândia, locação mítica para o realizador, a narrativa é movida por uma incrível trinca de personagens femininas, figuras que, conforme o próprio cineasta explica, combinam insurgência, desobediência civil e luta política.

Sensuais, poderosas e divertidas, as irmãs "gasolineiras" Chitara, papel de Joana Darc, e Léa, feita por Léa Alves, comandam uma refinaria clandestina, onde produzem uma gasolina mais barata, vendida a motoboys da região, ligados ao tráfico de drogas.

Uma candidata a deputada, interpretada por Andréia Vieira, soma-se à dupla, defendendo "o povo da periferia" contra a "playboyzada" –seu figurino evoca heroínas pop como Lara Croft, e as sequências de campanha eleitoral são inseparáveis do que o Brasil viveu nas últimas eleições.

A estética pós-apocalíptica lembra ainda a distopia de "Mad Max" e "Bacurau", mas, para além de um expresso desejo de cinefilia, as motivações de "Mato Seco em Chamas" são sobretudo políticas –e locais. Impossível assistir ao filme sem pensar na única presidente mulher do país e na disputa pelo controle dos lucros da exploração do petróleo durante seu governo.

No longa, a descoberta de um poço de petróleo no meio da árida vegetação do cerrado e sua extração clandestina funcionam como alegorias do fazer cinema no Brasil pós-2016, algo como tirar leite de pedra –ou tirar ouro negro do mato seco. Difícil esquecer do papel que a Petrobras exerceu no financiamento da cultura, e em especial do cinema, até algum tempo atrás. Essa interpretação não significa, porém, que haja qualquer esquematismo na estrutura do filme ou na mise-en-scène.

Na fantasia política futurista criada por Queirós e Pimenta, a costura da ficção incorpora elementos do documentário, sem que haja uma distinção clara entre o que é invenção e o que é captura da realidade. De todo modo, a atitude de observação própria ao documentário contribui para os tempos dilatados de algumas sequências. Nelas, conseguimos ver corpos que resistem coletivamente às opressões do cotidiano e às durezas da precariedade e conseguem momentos de alegria, diversão e autoafirmação.

As maiores qualidades de "Mato Seco em Chamas" talvez sejam a autenticidade e a criatividade, a capacidade em embarcar em delírios altamente políticos e ao mesmo tempo de forte carga poética. Poucas imagens no cinema recente têm tanta força quanto a cena em que um ônibus transporta um grupo de detentas –uma das protagonistas está na cadeia.

De repente, por força do desejo das mulheres, ou talvez em função de um simples cochilo, o veículo se transforma em palco de um fantástico baile funk. Em uma fração de segundo, passamos da passividade dos corpos cansados e restritos a seus assentos à alegria de pernas que dobram e esticam, bundas que tremem, lábios que se encostam.

Premiado em festivais importantes, como o Cinéma du Réel, de Paris, e o Indie Lisboa, o filme é pura radicalidade. Funciona como um convite para um mergulho mais profundo na obra do cineasta, exibida em março na retrospectiva organizada pelos cinemas do IMS.

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