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Filme tem Bruno Pereira, indigenista assassinado, num registro precioso

Documentário 'A Invenção do Outro', de Bruno Jorge, mostra riscos de vida aos indígenas e aos cineastas no vale do Javari

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A Invenção do Outro

  • Quando Mostra Ecofalante: sex. (9), às 20h30, no Espaço Itaú Augusta
  • Classificação Não informada
  • Produção Brasil, 2022
  • Direção Bruno Jorge

Na história do documentário, tentativas de registrar a primeira imagem de povos nunca antes filmados ou fotografados produziram filmes e reflexões fundamentais. Qual é o papel do cinema nessa configuração? Que responsabilidade tem o cineasta no contato com povos que até o momento do encontro desconheciam o cinema, os brancos, o capitalismo?

"First Contact", de 1982, dos australianos Bob Connolly e Robin Anderson, trabalha a questão de um jeito interessante. O filme reconstitui uma expedição que procurava ouro nas montanhas da Nova Guiné, em 1930. Meio século mais tarde, a dupla de cineastas leva fotos daquele contato inaugural entre brancos e nativos para seus descendentes, ainda bastante isolados.

A Invenção do Outro, de Bruno Jorge
Cena do filme 'A Invenção do Outro', de Bruno Jorge - Reprodução

No Brasil, na segunda metade do século 20, os cineastas Adrian Cowell, Vincent Carelli e Andrea Tonacci —respectivamente em "Os Últimos Isolados", "Corumbiara" e "Os Arara"— se dedicaram a filmar povos indígenas apartados do convívio com brancos ou outros indígenas. Cada um a seu modo procurou traduzir em imagens aquela que a pesquisadora Clarisse Alvarenga chama de "a cena do contato", marco do encontro primordial entre a câmera e seus novos sujeitos.

"A Invenção do Outro", obra do ano passado de Bruno Jorge, exibido em São Paulo na Mostra Ecofalante de Cinema, se inscreve nessa história de maneira cuidadosa, consciente das iniciativas que o precederam, de suas armadilhas e encantos.

O documentário foi rodado em 2019 no vale do Javari, na fronteira entre a Amazônia brasileira, o Peru e a Bolívia, região considerada detentora da maior concentração de povos originários isolados do mundo.

Pelas lentes de Bruno Jorge, acompanhamos uma equipe de 30 pessoas que tenta contato com os korubo. O objetivo era contribuir para pacificar as relações conflituosas com os vizinhos matis e, além disso, promover a reaproximação de alguns indivíduos, que depois de se afastarem do grupo de origem, em 2015, estabeleceram relação com a Funai. Essa parte separada do grupo agora tentava reencontrar os parentes, ainda isolados.

Em tentativas anteriores de contato com os korubo isolados, seis funcionários da Funai haviam sido mortos. O "risco do real" característico do documentário, de que fala Jean-Louis Comolli, era, na expedição de "A Invenção do Outro", risco real, e não só para quem estava atrás da câmera.

Na equipe de 30 pessoas que vemos no filme, há agentes da Funai, profissionais da saúde e indígenas colaboradores. Entre eles, o indigenista pernambucano Bruno Pereira, assassinado no ano passado ao lado do jornalista britânico Dom Phillips. Vemos registros preciosos de Bruno Pereira no trabalho, numa combinação singular de carisma e firmeza.

A duração é um elemento importante do filme. Para além do dado objetivo –144 minutos, acima da média das sessões comerciais–, "A Invenção do Outro" comporta muitos momentos de espera. Há, em primeiro lugar, uma questão sanitária: para avançar é preciso que ninguém da expedição tenha sintomas de gripe ou outra doença. Qualquer vírus pode ser fatal para povos isolados.

Há, também, uma razão narrativa para a espera: os tempos mortos nos dão a dimensão da dificuldade enfrentada no processo de realização de "filmes de contato" como "A Invenção do Outro".

Não por acaso, menciono o contato em si só agora, nestes parágrafos finais. Quero, sim, evitar spoilers. Mas principalmente desejo contribuir para uma postura paciente por parte do leitor-espectador. Numa rara aparição de mulheres koburo no filme, as vemos curiosas diante do corpo das mulheres da expedição, raras também.

Opera-se ali, discretamente, uma inversão: as indígenas dirigem a cena, ao pedirem que as enfermeiras tirem as camisetas. Ao tornarem-se objeto da visão, elas querem ver, ser agentes. Como dimensionar esse gesto, tão importante, performado por mulheres sem experiência frente à câmera? Essa cena, preciosa, dá uma ideia da negociação (possível?) entre a cultura do visível —a dos brancos— e o mundo dos indígenas amazônicos, no qual o invisível tem lugar fundamental.

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