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Em Cannes e na Netflix, indígenas ganham as telas e reacendem debate de autoria

Povos originários cruzam a fronteira documental para os filmes e séries de ficção, mas participação nos bastidores segue tímida

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Cena do filme 'A Flor do Buriti', de João Salaviza e Renée Nader Messora

Cena do filme 'A Flor do Buriti', de João Salaviza e Renée Nader Messora Divulgação

São Paulo

Para além de demarcar terras, povos originários parecem viver hoje uma luta para ocupar também as telas. Foi assim que o escritor Ailton Krenak descreveu, há alguns anos, a necessidade de aumentar a presença indígena no audiovisual, um apelo que muitos parecem ter ouvido.

Cena do filme 'A Flor do Buriti', de João Salaviza e Renée Nader Messora
Cena do filme 'A Flor do Buriti', de João Salaviza e Renée Nader Messora - Divulgação

Numa leva recente de produções nacionais de ficção, os indígenas têm tomado protagonismo. Esse movimento vai ficar mais claro a partir da semana que vem, quando o Brasil estará representado no Festival de Cannes, o mais importante da cinefilia, por "A Flor do Buriti", que retoma o trabalho de João Salaviza e Renée Nader Messora com os krahô, já filmados por eles em "Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos".

Mas antes mesmo do evento, no mês passado, em que se comemorou o Dia dos Povos Indígenas, estiveram em cartaz "Noites Alienígenas" e "Para’í". No streaming, "Cidade Invisível" manteve sua segunda temporada, centrada no folclore, entre as mais vistas.

Aos tapajós, guaranis, krahôs e guajajaras desses títulos somam-se ainda os yanomamis de "A Última Floresta", os desanos de "A Febre", os ticunas de "Antes o Tempo Não Acabava" e kuikuros, javaés e kadiwéus da animação "Mitos Indígenas em Travessia".

Eles estão distantes de ficções celebradas do passado, como "Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel" e "O Guarani", que sexualizaram e escolheram brancos para o papel dos indígenas protagonistas, sem muito comprometimento ou contato com os povos originários.

"Quando usei a expressão ‘demarcar as telas’ pela primeira vez, em 2014, foi no sentido de desdobrar as conquistas políticas por direitos territoriais que a gente já tinha alcançado a partir dos anos 1980. Agora, há uma nova jornada, que pensa o território não mais como uma questão física, mas também subjetiva", diz Krenak, um dos autores e líderes indígenas mais respeitados do país.

Ele próprio prepara um roteiro, batizado de "Jerônimo", que deve começar a ser gravado no ano que vem. Krenak deve assumir a codireção da trama, sobre um xavante que entra em contato com pessoas de fora de sua aldeia pela primeira vez, aos 60 anos. O orçamento foi aprovado e a expectativa é que o projeto seja finalizado em dois anos.

É impregnando narrativas audiovisuais de histórias sobre os povos indígenas que, ele acredita, mudará também o clima político e a animosidade do país, que viu recentemente uma crise se alastrar pelos yanomamis e o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.

Quem faz eco é Maíra Bühler, cineasta que desenvolve "O Casamento". Ela insiste que é preciso acabar com a romantização em torno do tema, para que o Brasil entenda o quão diverso é –cheio de línguas, culturas e formas de viver diferentes.

Esse romantismo é aquele presente nas várias versões para a história de Pocahontas, com uma variante brasileira que é objeto central do filme de Bühler. Ainda em fase embrionária, "O Casamento" surgiu de uma ideia da Abrolhos Filmes e pretende desconstruir a espetacularização que envolveu o primeiro matrimônio de um branco com uma indígena no Brasil, nos anos 1950.

Diacuí, do povo kalapalo, foi apresentada pelos jornais da época como uma selvagem que seria civilizada, graças a um salvador branco que a levou para a cidade grande, encheu seu rosto de maquiagem e a pôs num vestido de noiva. Sua história, porém, é marcada por diversas agressões, ignoradas à época.

"Precisamos entender toda a dor e a violência que esse mito da miscigenação esconde. Uma das formas de romper com isso é entender que o amor romântico não é universal. Para os kalapalos, as relações afetivas são vividas de outra forma. Este é um filme sobre um choque de mundos e de narrativas", diz Bühler.

Aires Câmara Cunha e Diacuí Kalapalo, que se casaram nos anos 1950 - Reprodução

A ideia idílica da miscigenação suscita também questionamentos dentro do próprio fazer cinematográfico. Por mais que a indústria esteja se voltando aos indígenas para além do gênero documental, mais antropológico, é fato que a produção desses filmes e séries ainda se concentra em mãos brancas.

Em meio à fervente discussão sobre lugar de fala, não é com facilidade que se navega por esse campo delicado. Bühler assina o roteiro de "O Casamento" com o antropólogo Renato Sztutman e Urisé Kalapalo, indígena, num esforço coletivo que, diz ela, ilustra justamente o choque cultural sobre o qual fala a trama.

Renée Nader Messora, cineasta que com o marido e codiretor, o português João Salaviza, vai levar "Flor do Buriti" e uma comitiva de indígenas a Cannes, também se juntou a três representantes dos povos originários vistos nos filmes, Ilda Patpro Krahô, Francisco Hyjnõ Krahô e Ihjãc Henrique Krahô, corroteiristas que guiaram também seu processo de direção.

Messora, que desde 2009 visita rotineiramente os krahôs, diz que sua carreira inteira é atravessada por questionamentos do tipo –dos quais ela não foge, mas que ainda estão sem respostas.

"Esta discussão nos faz repensar o nosso lugar e isso sempre vai ser válido. Por ser uma mulher branca numa comunidade indígena, eu gosto de pensar como eu posso ser aliada deles e o que eu posso fazer para alavancar os processos que a comunidade quer que sejam alavancados", afirma.

"Mas talvez eu não devesse filmar numa comunidade indígena. Já ouvi isso, e esses questionamentos aparecem toda hora." Assim, Messora instituiu entre os krahôs do Tocantins um coletivo de audiovisual, para que desse algo em retorno à comunidade que a acolheu e se permitiu ser gravada.

Essa troca é comum entre cineastas que filmam com povos originários. Bühler também tem como contrapartida para "O Casamento" deixar para os kalapalos do Xingu um espaço de produção audiovisual e um centro de memória. Já em paralelo à ficção, ela auxilia jovens locais a desenvolver um documentário sobre o resgate da história de Diacuí.

Kalapalos do Xingu recuperam história da indígena Diacuí durante produção do filme 'O Casamento', de Maíra Bühler
Kalapalos do Xingu recuperam história da indígena Diacuí durante produção do filme 'O Casamento', de Maíra Bühler - Divulgação

Editais também têm destinado recursos a produções centradas nos povos originários, mas o caminho até a representatividade em todas as esferas, incluindo em cargos de direção e produção, ainda é longo, na avaliação de Krenak.

O autor elogia o trabalho de gente como Zelito Viana, Andrea Tonacci e Luiz Bolognesi, que se juntou a Davi Kopenawa em "A Última Floresta", que ele vê como grandes aliados na desmistificação do indígena no audiovisual. Mas destaca que, ainda assim, é a visão do branco a que mais chega às telas. "Demarcar a tela é imprimir o nosso próprio olhar nas imagens que vão contar as nossas histórias", afirma.

"Cidade Invisível" foi criticada em sua primeira temporada justamente pela ausência de indígenas em suas equipes e episódios. Para a segunda leva, mudou a trama do Rio de Janeiro para o Pará e corrigiu o problema chamando a cineasta Graciela Guarani para dirigir parte dos capítulos. O elenco também ganhou adições, como Zahy Tentehar.

À época do lançamento, ela deixou claro seu receio com a produção. "Eu não sou boba, não. Logo que fui fazer o teste, falei das minhas questões com a série e daquilo que não gostaria de ver", disse a atriz. Quando percebeu o maior comprometimento com seu povo, cedeu e, agora, rodou o mundo com sua personagem vilanesca, distante justamente do lugar romantizado ao qual indígenas são historicamente colados.

Se no gênero documental realizadores indígenas têm aparecido com mais frequência, como é o caso de Takumã Kuikuro e da própria Graciela Guarani ou de M’bya Guarani Kuaray e Pará Yxapy, conhecidos também como Ariel Ortega e Patrícia Ferreira, homenageados na última Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, a ficção se mostra um território ainda a ser desbravado.

Com amplo acervo de produções criadas por indígenas, a plataforma Vídeo nas Aldeias, fundada pelo antropólogo e documentarista Vincent Carelli, referência no tema, reúne o potencial que há neste novo cinema, que ainda tem muito a ser explorado.

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