Descrição de chapéu yanomami

Bolsonaro não teve interesse nenhum na questão dos índios, diz Claudia Andujar

Prestes a transferir seu acervo para o Instituto Moreira Salles, fotógrafa conta que se sentia uma parte do povo yanomami

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Os Yanomami costumam incendiar suas casas coletivas quando se mudam, fogem de uma epidemia ou quando um importante líder morre, Catrimani, 1972-1976 (filme infravermelho)

Fotografia de Claudia Andujar retrata incêndio das casas coletivas dos yanomamis Claudia Andujar

São Paulo

Quando já convivia com os yanomamis, em meados da década de 1970, Claudia Andujar queria entender melhor o modo de ser e de pensar daquele povo. Numa de suas viagens a São Paulo, ela comprou vários pacotes de papel e pincéis atômicos e, na volta à floresta, pediu aos indígenas que expressassem em desenhos os seus mitos e crenças religiosas.

No início, foi difícil, mas com o tempo eles começaram a se revelar, conta Carlo Zacquini, missionário que trabalha com os yanomamis desde a década de 1960 e que atuou como tradutor e mediador da aproximação entre a artista visual e a tribo.

Autorretrato com jovem yanomami, Catrimani, 1974
Autorretrato de Claudia Andujar com jovem yanomami, Catrimani, em 1974 - Claudia Andujar

O gesto de Andujar, diz Zacquini, foi uma tentativa de se aproximar dos yanomamis para além dos retratos que ela já fazia deles. Esse conjunto de imagens, com o passar do tempo, veio a definir a carreira e a vida da fotógrafa.

Enquanto as imagens da luta yanomami vêm circulando nos últimos anos por vários países numa grande mostra retrospectiva de Andujar, os negativos fotográficos desse material estão agora em estantes no apartamento dela, no centro de São Paulo, talvez não por muito tempo.

Nos últimos oito anos, Andujar negociou a transferência do seu acervo para o Instituto Moreira Salles. Vão passar para a guarda da instituição 45 mil fotogramas, além de livros e documentos de todas as fases da carreira da artista, incluindo material do período entre 1950 e 1970, anterior ao seu engajamento na causa indígena.

Naqueles anos, logo depois de chegar ao Brasil fugindo da perseguição nazista, Andujar viajou o país como fotojornalista da revista Realidade, registrando temas como o trabalho de uma parteira em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, a situação dos pacientes do hospital psiquiátrico do Juquery e a deportação de migrantes desempregados pelo estado de São Paulo.

Seu acervo conta ainda com trabalhos de estética mais experimental, a exemplo de um ensaio sobre as ruas da cidade de São Paulo e de outro sobre a vida de homossexuais durante a ditadura.

A fotógrafa, hoje com 92 anos, diz que a preservação de seu acervo é importante porque ele representa a sua vida. Especificamente sobre a guarda das imagens dos yanomamis, que compõem a maior parte do arquivo, ela afirma ter a esperança de que os indígenas entendam que ela os tinha como familiares. "Eu me sentia parte deles", afirma.

Esse sentimento, conta a fotógrafa, se deve ao fato de ela não ter conseguido salvar a família de seu pai da morte nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, durante a Segunda Guerra Mundial. "Eu fui a única que sobrevivi. Se eu não consegui ajudar a minha família, eu quis continuar a lutar para ver o que a gente conseguia fazer para ajudar os yanomamis."

Entre rusgas com os militares, Andujar teve papel ativo no longo processo que levou à demarcação da terra yanomami, no início dos anos 1990. Durante sua convivência de décadas com os indígenas, compôs o que talvez seja o maior arquivo de imagens desse povo, a partir do momento em que decidiu largar a carreira no jornalismo, em 1971, e virar um misto de artista e ativista.

Ela registrou a vida nas aldeias, rituais fúnebres e a ingestão de alucinógenos, além de ter feito centenas de retratos. Também acompanhou a corrida do ouro iniciada na década de 1980, quando garimpeiros passaram a entrar irregularmente na terra yanomami, uma área dividida entre Amazonas e Roraima —a partir disso, criou uma série de fotos de placas de lojas de Boa Vista que vendiam o valioso metal.

A invasão garimpeira na área yanomami seguiu nas próximas décadas e acabou chegando até os dias de hoje —a conivência com o garimpo foi uma marca do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. "Ele não teve interesse nenhum na questão dos índios", diz Andujar.

Zacquini, o missionário, conta que na época das primeiras investidas dos garimpeiros os yanomamis ficaram com muito medo. "Eles perceberam que não tinham chance nenhuma com as flechas deles de guerrear contra as centenas de homens que andavam no mato, quase como eles, todos com armas de fogo. Eles desistiram de fazer represálias."

A questão do garimpo não é só a busca pelo ouro. Ao remover o solo, a atividade gera poças onde vivem os mosquitos causadores de malária. Também contamina a terra, dificultando a agricultura indígena, e os rios, impedindo a pesca.

Todos esses fatores geraram crises periódicas de desnutrição e malária entre os yanomamis. A mais recente, no início deste ano, foi sintetizada com a circulação de fotografias de indígenas esquálidos, numa situação que parece repetir outros tempos.

Zacquini conta que já havia presenciado cenas muito parecidas com as de agora, de indígenas literalmente morrendo de fome e doenças, em décadas passadas. Ele lembra ter visto uma criança desnutrida em estado terminal na região de Ajarani, um dos primeiros lugares afetados pela construção da BR-210, e sua mãe com tuberculose.

A fotógrafa Claudia Andujar em seu apartamento, em São Paulo, em março de 2023
A fotógrafa Claudia Andujar em seu apartamento, em São Paulo, em março deste ano - Helen Salomão

Conhecida como Perimetral Norte, a rodovia foi um projeto de integração nacional da ditadura que cruzava áreas indígenas no Amazonas, forçando o contato de povos isolados com os trabalhadores da obra, o que expôs os indígenas a doenças levadas pelos brancos.

Ainda não há uma data definida para a transferência do acervo de Andujar para o IMS. Quando ocorrer, o material deverá ficar armazenado nas instalações da instituição no Rio de Janeiro.

As imagens serão digitalizadas e devem ser fonte para novas exposições. Em relação aos fotogramas dos yanomamis, há a intenção de envolver os próprios indígenas no pensamento sobre o arquivo, de acordo com Thyago Nogueira, coordenador de fotografia contemporânea do museu.

"A história tão única da Claudia representa um objeto não só no circuito da arte, mas também um instrumento político de atuação sobre o mundo", afirma. "A ideia é pensar como o arquivo segue sendo uma força, um instrumento que serve ao povo yanomami."

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