Descrição de chapéu The New York Times

Como quadro de Picasso foi roubado acidentalmente por um funcionário de aeroporto

Caso aconteceu em 1969 em Boston, nos Estados Unidos, e envolveu obra do artista que na época valia US$ 75 mil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Dan Barry
The New York Times

A tela de Picasso "caiu do caminhão", como dizem. Desapareceu de uma plataforma de carga no aeroporto de Boston e acabou onde não devia: na casa modesta de um tal de Merrill Rummel, também conhecido como Bill.

Para sermos justos, esse operador de empilhadeira não fazia ideia de que a caixa que jogara no porta-malas de seu carro continha uma tela de Picasso. Para sermos justos, ele não gostou muito da tela –preferia arte realista.

0
O pintor Pablo Picasso - Robert Doisneau/Gamma Rapho via Imagine Picasso

Agentes do FBI estavam à procura de uma tela roubada de Picasso que não estava disponível para ser exposta ao público, já que estava escondida no armário do hall da casa de Rummell. Ele e sua noiva, Sam, começaram a entrar em pânico.

"Como a gente faz para se livrar disso?", ela se recorda de ter pensado. "Não podíamos simplesmente devolver. Era um abacaxi dos grandes."

Por sorte, Rummell conhecia um cara. Um sujeito altamente hábil em resolver problemas. Um homem acostumado a dar um jeito nas coisas. Bill ligou para um número que conhecia de cor.

"O Caso do Picasso Desaparecido" vem de anos atrás. Vem de antes de Picasso haver sequer pintado a tela em questão. Ele remonta aos anos 1950, em Waterville, Maine, onde os garotos Rummel –Bill e seu irmão menor, Whit— viviam testando a paciência ianque de sua cidade natal.

Se um deles estava assaltando parquímetros para engordar seu cofrinho de moedas, o outro estava furtando canetas da Woolworth’s —uma loja do tipo 1,99. Se um deles estava roubando rádios de carros deixados no ferro-velho, o outro estava dirigindo seu carro de modo tão temerário que o veículo parecia destinado a acabar no ferro-velho.

Mas o pai deles, Whitcomb Rummel Sênior, sempre conseguia acalmar os policiais irritados, assegurando que daria um jeito. E deu: quando Whit, aos 12 anos –conhecido na família como "Half-Whit", ou retardado, em português— foi flagrado roubando da Woolworth’s, seu pai o proibiu de entrar nessa loja ou em qualquer outra por um ano.

"Nem sequer na vendinha da esquina para comprar uma Coca", recorda o filho, que hoje tem 76 anos. "Minha mãe tinha que levar roupas para o carro para eu experimentar as calças, porque eu não podia entrar na loja."

Nenhum dos filhos ousava desobedecer seu pai. "Ele via tudo, ouvia tudo, ficava sabendo de tudo", disse Whit Rummel.

Rummel, o pai, nunca falava da própria infância. Talvez tivesse sido dolorosa demais. Sua mãe morreu de gripe espanhola quando ele tinha 9 anos e seu pai então o despachou para viver com uma tia avessa a demonstrar qualquer afeto. "Foi só depois do ensino médio que ele voltou a ter contato com seu pai", contou Whit Rummel.

Rummel, pai, fez faculdade, trabalhou um pouco como ator, casou-se, serviu na Marinha na África na Segunda Guerra Mundial e então se mudou para Waterville, onde comprou e modernizou uma barraca de sorvetes que virou uma das preferências locais.

Para o alívio de Waterville, os irmãos Rummel se mudaram da cidade. Whit foi estudar na Universidade Tulane, em Nova Orleans. Bill serviu na Guarda Costeira no Michigan, onde se apaixonou por uma garçonete de um salão de boliche.

Quando seu trabalho na Guarda Costeira chegou ao fim, em 1968, Bill foi trabalhar na Emery Air Freight, então a maior companhia americana de transporte aéreo de cargas. Ele trabalhava à noite na plataforma de carregamento da companhia no aeroporto, onde um caixote chegou no início de 1969, vindo de Paris.

Dentro dele havia uma tela de Picasso: "Retrato de uma Mulher e um Mosqueteiro".

Retrato de uma Mulher e um Mosqueteiro
'Retrato de uma Mulher e um Mosqueteiro', de Pablo Picasso - Whitcomb Rummel Jr./The New York Times

Pablo Picasso, então chegando perto dos 90 anos, havia se interessado pelo mosqueteiro como uma figura evocativa dos velhos mestres, especialmente Rembrandt, e voltara ao mesmo tema várias vezes. "Foi uma ideia fixa de seu trabalho tardio", afirmou Pepe Karmel, professor de história da arte na New York University. "Acho que ele estava se questionando: ‘Onde minha arte se situa em relação aos velhos mestres?’"

Concluída em 1967, a tela deveria ser enviada de Boston a uma galeria de Milwaukee pertencente a Irving Luntz. O filho deste, Holden Luntz, recorda que seu pai, já falecido, comprou a tela de Daniel-Henry Kahnweiler, marchand parisiense conhecido por divulgar Picasso. Como as negociações foram feitas no 40º aniversário de seu pai, ele contou, Kahnweiler concordou em vender a obra por US$ 40 mil.

Mas o quadro nunca chegou a Milwaukee. Ansioso, Irving Luntz entrou em contato com a Emery para fazer uma queixa, mas a companhia de transporte aéreo tinha seu próprio problema emergente, que acabaria conhecido na Nova Inglaterra como a tempestade de cem horas.

Uma nevasca prolongada no final de fevereiro paralisou a cidade de Boston, incluindo o aeroporto, onde mais de 60 centímetros de neve atrapalharam os voos de passageiros e as entregas de cargas. Grandes contêineres se espalharam pela pista de pouso, enquanto caixas e pacotes entupiam a plataforma de carga.

Os executivos da Emery exigiram então que a plataforma fosse organizada. Sob pressão, disse Rummel, seu supervisor lhe apontou uma caixa na qual faltava uma etiqueta e lhe disse: "Leve isso com você quando voltar para casa hoje".

Vale notar que, segundo Rummel, esse mesmo supervisor acabaria sendo demitido mais tarde. Por roubar.

Rummel jogou a caixa no porta-malas de seu Chevy Impala ano 1962 e, alguns dias mais tarde, a arrastou para dentro de casa. Abriu o caixote com um martelo e descobriu que estava de posse de um Picasso. Ele não gostou da tela.

Rummel e Sam, sua mulher, esconderam o caixote no armário debaixo da escada. "Enfiamos lá no fundo e depois empilhamos coisas na frente", contou Sam Rummel. "Nunca mais falamos no assunto."

Mas alguém estava falando: Irving Luntz, o dono da galeria em Milwaukee. Depois de semanas sem seu Picasso, ele contatou o FBI, que começou a investigar o aeroporto. Os jovens noivos de Medford ficaram preocupados.

Sem saber o que fazer, Bill Rummel ligou para seu irmão, Whit, que entendia mais de arte. Whit havia certa vez cortado uma foto de uma tela de Picasso de um livro da biblioteca para pendurá-la em seu quarto.

A primeira pergunta de Whit não poderia ser outra: "Você já ligou para o faz-tudo?"

Claro. O pai deles.

Rummel, o pai, ouviu o filho mais velho explicar seu problema e então propôs duas soluções, com a mesma calma com que teria perguntado: "Vai chantilly ou calda de chocolate em cima?"

A primeira: eles poderiam enterrar o Picasso nas fundações de um restaurante de Waterville que estava sendo renovado e do qual ele, o pai, era co-proprietário. O nome do restaurante, The Silent Woman, parecia singularmente apropriado. Então poderiam desenterrar a tela 30 anos depois e possivelmente vendê-la por uma pequena fortuna.

A outra solução: devolvê-la.

Quando Bill Rummel perguntou o que achava que ele deveria fazer, o pai respondeu que era uma escolha de vida que ele teria que fazer por si mesmo. "Então falei: ‘Vou devolver’", contou o filho. "E ele disse: ‘Eu te ajudo.’"

Rummel, o pai, telefonou para Whit em Nova Orleans e lhe deu instruções detalhadas para redigir um bilhete manuscrito que não poderia ser rastreado. Use papel de boa qualidade. Como você é canhoto, escreva com a mão direita. E como você estuda redação criativa, crie um texto que soa um pouco artístico. Depois mande por via aérea para seu irmão em Medford.

Enquanto isso, o FBI estava intensificando a investigação, emitindo um boletim para agências policiais em todo o nordeste do país. "Tela de Picasso roubada do aeroporto Logan. Fiquem de aviso".

Dias mais tarde, o rei do sorvete de Waterville chegou a Medford com sua esposa, Ann, e um plano. Ele esfregou a embalagem e o caixote da pintura com vaselina, por motivos que seu filho não entendeu. Afixou o bilhete manuscrito. Vestiu um trench coat, luvas e um chapéu com aba. Era hora de agir.

Três anos depois dessa aventura, Whitcomb Rummel morreria subitamente aos 63 anos. Em sua honra, seu restaurante ficaria fechado até a hora da procura maior por sorvete à noite. Seu filho Bill passaria os 30 anos seguintes trabalhando para a Emery, chegando a tornar-se gerente regional antes de se aposentar, mudar-se para a Carolina do Sul e morrer em 2015, aos 71 anos de idade.

Mas naquele 1º de abril de 1969, em Boston, pai e filho estavam compartilhando um momento inesquecível: colocando um Picasso roubado num Chevy Impala.

Usando gorro preto e óculos de sol, Bill Rummel os conduziu para Boston e, seguindo as direções de seu pai, estacionou o carro na Huntington Avenue. Seu pai desceu do Impala e carregou o caixote para alguns metros à frente.

Rummel, o pai, colocou o caixote num táxi, deu ao motorista uma cédula de US$ 20 e lhe pediu para entregar o pacote no Museum of Fine Arts, logo ali adiante na avenida. Ele voltou para o carro do filho. No trajeto de volta para Medford, desfez-se do casaco, do chapéu e das luvas em latas de lixo separadas.

Pouco mais tarde as agências de notícias já estavam circulando fotos de Perry T. Rathbone, o estimado diretor do museu, posando com o Picasso recuperado, de valor estimado em US$ 75 mil, e um misterioso bilhete manuscrito que dizia: "Por favor, aceite isto para repor em parte alguns dos quadros removidos de museus em todo o país."

Luntz, o dono da galeria em Milwaukee, disse a uma estação de televisão que estava "totalmente nas nuvens por recuperar esse quadro". Já havia interessados fazendo fila para comprá-lo.

Whit Rummel, também conhecido como Robbin’ Hood, é um cineasta de Chapel Hill, na Carolina do Norte. Ele pensa há tempos que a história do Picasso de sua família poderia render um filme. Guardou todos os recortes de jornal como provas de uma história que não pôde ser contada durante décadas. Mas pressentia uma lacuna potencial na trama:

Onde a tela de Picasso foi parar?

Dois anos atrás ele contratou a editora e jornalista financeira Monica Boyer para rastrear a tela. Ela não encontrou nenhuma menção da obra em documentos de casas de leilão ou em diversos bancos de dados de telas de Picasso. E, é claro, o artista havia criado muitas telas sobre o tema de mosqueteiros.

Mesmo assim, usando algumas pistas –Milwaukee, por exemplo--, Boyer localizou um catálogo de uma exposição de 1971 intitulada "Picasso em Milwaukee". Uma das obras expostas era "Retrato de uma Mulher e um Mosqueteiro", cedida por Sidney e Dorothy Kohl.

Sidney Kohl, que tem 92 anos e vive em Palm Beach, na Flórida, é membro da família por trás da rede de lojas de departamentos Kohl’s. É um construtor, investidor e colecionador de arte muito rico. Em 2012, oito obras da coleção do casal Kohl foram vendidas em leilão por US$ 101 milhões.

Essa venda não incluiu a tela de Picasso, e os Kohl não responderam a vários pedidos para que confirmassem se o quadro –que sem dúvida vale milhões de dólares— ainda está em sua coleção particular.

Onde quer que esteja, esse trabalho de um dos artistas mais célebres do século 20 continua tão escondido do olhar público quanto estaria se tivesse continuado guardado no vão debaixo da escada da casa de um operador de empilhadeira. Mas esse trabalhador pelo menos tentara devolvê-lo ao mundo.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.