Crônicas de Pedro Lemebel resgatam verve radical da comunidade LGBTQIA+

Autor chileno, cuja obra chega tardiamente ao mercado brasileiro, traça paralelos entre LGBTfobia e violência colonial

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O artista chileno Pedro Lemebel em fotografia exibida no documentário 'Lemebel'

O artista chileno Pedro Lemebel em fotografia exibida no documentário 'Lemebel' Joanna Repossi Garibal/Divulgação

São Paulo

Quem foi à avenida Paulista em um domingo ensolarado de junho viu uma multidão dançante coberta pelo manto do arco-íris. Era a parada LGBTQIA+ de São Paulo, um das maiores do mundo.

Se estivesse vivo e de passagem pela capital paulista, o artista chileno Pedro Lemebel talvez até ficasse um pouquinho para apreciar os corpos reluzentes sob o sol outonal, mas provavelmente logo voltaria a seus afazeres. Logo ele, um dos maiores ícones LGBTQIA+ da América Latina, deixara de frequentar paradas por causa do caráter excessivamente comercial que elas ganharam com o tempo.

Pessoa com roupas pretas, bandana e óculos escuros com braços cruzados sentada ao lado de uma das colunas vermelhas que dão sustentação ao Masp
O artista chileno Pedro Lemebel posa para foto no vão do Masp, em São Paulo - Leticia Moreira - 15.nov.13/Folhapress

Não foi assim sempre. As paradas nasceram como um protesto político para relembrar a revolta de Stonewall, contra a violência policial, protagonizada por gays, lésbicas e pessoas trans de Nova York em 28 de junho de 1969. Em São Paulo, a parada só seria organizada em 1997, quase três décadas depois.

O próprio Lemebel chegou a participar da parada de Nova York em 1994, na qual fez uma célebre performance portando uma coroa de seringas para denunciar os efeitos nefastos da "colonização por meio da epidemia" de Aids. A polícia o abordou, acreditando que as seringas estivessem contaminadas.

No mês em que se comemora o 54º aniversário de Stonewall, chega às livrarias brasileiras o primeiro livro de Lemebel traduzido para o português. Editado pela Zahar, "Poco Hombre" é uma antologia de crônicas que resgata, a partir de uma perspectiva terceiro-mundista, uma certa tradição radical da comunidade LGBTQIA+.

Organizada pelo crítico literário espanhol Ignacio Echevarría e traduzida por Mariana Sanchez, a obra dá ao público brasileiro a oportunidade de conhecer um dos expoentes da literatura marginal latino-americana, descrito pelo conterrâneo Roberto Bolaño como "o maior poeta de sua geração".

Lemebel nasceu em 1952 na periferia de Santiago. Era bicha, pobre e descendente de indígenas mapuche. Dissidente em todas as acepções do termo, lutou contra o regime de Augusto Pinochet e se manteve igualmente crítico do consenso neoliberal vigente após a transição para a democracia no Chile.

Sua obra recupera a memória das vítimas da ditadura. Não é um relato do exílio endinheirado na Europa, mas um testemunho das bichas, sapatonas e travestis da esquina, dos esfarrapados que ficaram para trás.

Também era dissidente dentro da comunidade LGBT+. Rejeitava o anglicismo "gay" e outras nomenclaturas estrangeiras. Preferia ser chamado de homossexual, bicha e viado, com pronomes masculinos e femininos. "Lemebel foi queer antes mesmo de o conceito existir", diz Óscar Contardo, seu biógrafo.

Ele começou a escrever depois dos 30 anos e, num primeiro momento, não foi bem recebido pelos seus pares. Era visto como identitário demais e até sectário. Lemebel não dava bola para a respeitabilidade. Sua língua era afiada como uma lâmina —e despudorada como um beijo grego.

Em seu texto mais célebre, "Manifesto (Falo pela Minha Diferença)", lido durante um protesto da esquerda chilena em 1986, em Santiago, Lemebel critica a ortodoxia da militância partidária. O artigo abre "Poco Hombre".

"Não me venha falar de proletariado, porque ser bicha e pobre é pior. Tem que ser ácido para aguentar. É desviar dos machinhos da esquina. É um pai que te odeia porque o filho quebra a munheca."

O artista chileno Pedro Lemebel
O artista chileno Pedro Lemebel - Pedro Marinello/Divulgação

Em seguida, emenda um aviso safado aos "esquerdomachos" de plantão. "Não se sinta agredido se falo contigo dessas coisas olhando seu volume no meio das pernas. Não sou hipócrita. Por acaso os peitos de uma mulher não chamam a sua atenção?"

Em outra obra, uma intervenção feita com Francisco Casas Silva, com quem formava o coletivo artístico Yeguas del Apocalipsis, ou éguas do apocalipse, a dupla de bichas cavalga nua sobre um equino branco guiado por um par de lésbicas. A performance pode ser vista no documentário "Lemebel", de 2020, disponível no Amazon Prime Video.

As Yeguas del Apocalipsis também foram destaque da 31ª Bienal de São Paulo, em 2014 , com a obra "Las dos Fridas", de 1989, em que a dupla reencena um famoso autorretrato da artista mexicana.

Lemebel não poupava críticas a ninguém, mas seria um erro chamar o artista de sectário. "Ele tinha um olhar generoso para todos os grupos marginalizados", diz Amara Moira, escritora e doutora em crítica literária pela Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas, no interior de São Paulo.

O artista denunciava a transfobia e a misoginia persistentes na comunidade gay. Nos anos 1980, alguns militantes do movimento homossexual viam na travestilidade um retrocesso e uma performance caricata da heterossexualidade.

Segundo a equatoriana Carmen Alvaro Jarrin, pesquisadora do movimento trans brasileiro e doutora pela Universidade Duke, nos Estados Unidos, "Lemebel via as travestis como o futuro, não o passado".

Seu único romance, "Tengo Miedo, Torero", conta a história ficcional do relacionamento de uma travesti com um guerrilheiro que participou da tentativa de assassinato contra Pinochet, em 1986, evento real do qual o ditador saiu ileso. A obra deve ser publicada no Brasil em 2024 pela Companhia das Letras.

Em "Poco Hombre", Lemebel aponta caminhos para a construção da solidariedade entre a comunidade LGBTQIA+ e os povos indígenas. De forma perspicaz, o autor estabelece um paralelo entre a violência colonial e a LGBTfobia.

De um lado, os povos indígenas foram dizimados pela tuberculose e outras epidemias, e a cultura originária foi sobreposta pelo idioma espanhol escrito. Do outro, os LGBTs morreram aos montes por causa da Aids, outra doença importada, e sofreram com o apagamento de tradições orais como o pajubá, dialeto LGBT+ brasileiro, incompatível com a linguagem oficial, acadêmica e jornalística.

Juão Nyn, artista indígena potiguara, descobriu Lemebel em 2015, depois de fazer uma performance no palco do Centro Cultural São Paulo com um cocar de seringas. Alguns dos presentes notaram a semelhança com a coroa de seringas do artista chileno, de quem virou fã.

Nyn é autor de de "Tybyra: Uma Tragédia Indígena Brasileira", obra de ficção baseada na história documentada do primeiro nativo condenado à morte por sodomia no Brasil colônia, em 1614, no Maranhão.

Segundo Nyn, muitas das identidades vistas hoje como dissidentes de gênero já estavam aqui antes da colonização europeia. "Seria uma concessão se pautar pelas caixinhas impostas pelo movimento LGBTQIA+. As letrinhas também vieram de caravelas."

Lemebel esteve no Brasil em pelo menos duas ocasiões. Na primeira, em 1980, tirou férias no Rio de Janeiro, viagem que o inspirou a escrever. Ele adorava música brasileira. Na crônica "A Noite dos Visons", presente em "Poco Hombre", descreve a apresentação de Ney Matogrosso na abertura do Rock in Rio, em 1985, como um marco da cultura LGBTQIA+ na América Latina e exalta uma certa viadagem generalizada da MPB nas figuras de Gal Costa, Gilberto Gil, Simone, Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Lemebel sobreviveria à Aids, mas não ao câncer. Morreu em 2015 por causa de um tumor na laringe. Já adoecido, visitou São Paulo como convidado da Balada Literária há dez anos. Quem o recebeu na capital paulista foi o escritor pernambucano Marcelino Freire, organizador do evento.

Ele conta que, mesmo debilitado, Lemebel pediu para ir ver os michês da cidade. Foram passear de carro por zonas como Arouche, Frei Caneca e Trianon. "Se eu não estivesse doente, vocês iam ver só", dizia.

O chileno também pediu para ir a um restaurante vegano, onde se encantou com uns pequenos copos de chá feitos de estanho e os surrupiou sorrateiramente.

Mais tarde, ele foi até o CCSP fazer uma apresentação. Acostumado a ser recebido por multidões durante suas passagens por outros países da América Latina, reclamou do pouco público presente. Por causa da doença, falava com o auxílio de uma eletrolaringe, aparelho que dava à sua voz um timbre metálico e o fazia cuspir a saliva acumulada na boca.

Sacou do bolso um dos copinhos de estanho, no qual depositava as suas cusparadas. Por ser feito de material opaco, o recipiente poupava o público do espetáculo ranhento.

A performance também pode ser interpretada como uma vingança simbólica de Lemebel contra o colonizador europeu. O estanho é um metal encontrado na Bolívia e usado na produção do bronze por meio da fusão com o cobre, uma das principais riquezas naturais do Chile. De certa forma, levar aquele copinho consigo não era roubo, mas uma reparação histórica.

Poco Hombre: escritos de uma bicha terceiro-mundista

  • Preço R$ 84,90 (400 págs.)
  • Autoria Pedro Lemebel
  • Editora Zahar
  • Organização Ignacio Echevarría
  • Tradução Mariana Sanchez
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