Exposição de Daniel Lannes ecoa Fernando Pessoa e Baudelaire com tom onírico

Individual do artista carioca em São Paulo expõe relação do pintor com a literatura, de Fernando Pessoa a Baudelaire

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Matheus Lopes Quirino

Sereias, escritores e até um marinheiro pairam suspensos em "Paraísos", individual de Daniel Lannes, que remexe com toda a etimologia angelical da palavra e ressignifica este cenário pretensioso e caro à história da arte.

Ali, naquele cubo branco dividido por um cortinado translúcido, o pintor carioca radicado em São Paulo subverte a visão do paraíso, esse espaço idílico fadado à eternidade.

Obra do pintor Daniel Lannes - Divulgação

Ao invés de querubins nus a tocar harpas, Lannes retrata ícones malditos, do cronista carioca João do Rio, pioneiro na imprensa ao jogar luz nos guetos homossexuais da cidade maravilhosa, ao poeta português Fernando Pessoa –e suas múltiplas faces.

É um paraíso fluído, atravessado por camadas de tintas que correm em direção à abstração, sem deixar de lado todo o arcabouço da figuração.

Ao buscar um "Oriente ao Oriente do Oriente", como escreveu Pessoa no poema "Opiário", o pintor realiza uma expedição como se estivesse de peito aberto a bordo da mesma embarcação que levou o português, imortalizada no relato dedicado ao amigo, companheiro das letras, Mário de Sá Carneiro: "Não faço mais que ver o navio ir/ Pelo canal de Suez a conduzir/ A minha vida, cânfora na aurora."

Em sua peregrinação a caminho das Índias, Álvaro de Campos, o heterônimo sagaz, conhece-se, perde-se e fica à deriva do ópio na aventura.

"Essas são pequenas janelas paradisíacas, são viagens que mostram paraísos artificiais", conta o artista plástico durante visita à exposição. Se a pintura é provação, como acredita, Daniel Lannes acende um cigarro e pede uma pausa antes de adentrar na galeria na rua Oscar Freire. Ele é categórico quando mira a vitrine de sua exposição: "Ao entrar ali, eu reencontro meus fantasmas".

Se como relata a literatura o horário dos fantasmas é a madrugada, o pintor, notívago confesso, escolheu o lusco-fusco, esse horário entre entardecer e o anoitecer para trabalhar nas telas da exposição.

"Todas as pinturas foram feitas à noite, porque é na noite que a gente elege nossas coisas, de dia, as coisas que nos elegem", ele cita o mote de uma amiga para explicar o melhor horário para lidar com seus processos, ruminações e, claro, fantasmas. Nessa atmosfera crepuscular, sua paleta é influenciada por violetas, roxos e acinzentados, tons saturados que refletem as luzes artificiais que está à mercê em seu ateliê no centro da cidade.

Segundo o curador Tomás Toledo, a atmosfera "nebulosa, intimista e onírica das pinturas evocam cenários, fantasias, personagens e atmosferas de tempos, naturezas e culturas distintas, mas que parecem estranhamente familiares entre si e à vontade nesse universo-paraíso-delirante", escreve no texto da mostra.

Dentre os trabalhos que simbolizam a atmosfera fantástica e suspensa na noite está a figura de um marinheiro composto de cores lascivas, que, bem lembra o crítico, assemelha-se aos tons alaranjados e róseos da película "Querelle", do alemão Rainer Werner Fassbinder, inspirado no livro homônimo de Jean Genet, que imaginou um mundo delirante onde onírico e realidade se fundem, cuja noite não tem fim.

O desejo pulsa nas personagens retratadas por Daniel Lannes. Desde os retratos de Pessoa, cujas variações, durante o processo, fizeram o artista lembrar um ditado de seu mestre, o restaurador niteroiense Cláudio Valério Teixeira: "Quem pinta uma cabeça, pinta uma batalha", às figuras aquáticas, como a sereia de "Transparências Latejantes", obra cujo título veio de uma estrofe do poema Opiário.

Ao trafegar por gêneros clássicos da pintura, o artista retrata em telas de grandes proporções cenas imponentes, como na paisagem idílica de "Meditação", inspirada no lema que guiou o alemão Caspar David Friedrich em "As fases da vida", de 1835, revela o artista durante a visita da reportagem à mostra.

Aos 42 anos, Lannes construiu seu repertório com apreço por referências históricas, algo notável em trabalhos seus da última década, como a pintura "Duelo de Camarotes: PIPO'S X CashBox", de 2014, que traz a figura de Dom Pedro I em um baile funk, a uma representação do mesmo monarca na exposição realizada no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 2022.

A inspiração na tela com a figura humana de Friedrich "Caminhante sobre o Mar de Névoa", de 1818, pode ser assimilada também na paisagem em que o artista ambienta uma conturbada visita da família imperial brasileira ao Egito.

Amordaçado e descamisado, o personagem parece conter o desejo em participar do fervor da batalha, resta a ele assistir aos corpos duelando ao longe. "E tem também o fetiche ali, as cordas do shibari, porque a ação está acontecendo naquela tempestade de areia e o voyeur não pode sair de onde está", explica o artista.

"É um lugar prazeroso na pintura, um desconforto sedutor". E sobre seus fantasmas, Daniel Lannes, ao fim da exposição, confessa: "Me torturam um pouco, mas me tratam bem".

Paraísos

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