Cais das Artes, última obra de Paulo Mendes da Rocha, enferruja antes de ser aberto

Equipamentos já instalados no prédio em Vitória são castigados pela maresia que os corrói, sob a promessa do retorno das obras

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O Cais das Artes, construção projetada por Paulo Mendes da Rocha, em Vitória Ciro Miguel/Folhapress

Ciro Miguel Vanessa Grossman
Vitória

Distante de construções como o Sesc 24 de Maio, tomadas pelos movimentos constantes da imprevisibilidade da vida, o Cais das Artes, último projeto de Paulo Mendes da Rocha, é dominado apenas pela brisa marítima, sem vestígio de presença humana. Isso porque as obras do museu em Vitória atrasaram e estão paralisadas há quase uma década.

O contraste entre os edifícios é quase palpável nos filmes exibidos na exposição "Geografias Construídas", que recupera toda a trajetória do arquiteto na Casa da Arquitectura, em Matosinhos, em Portugal, para onde todo seu acervo foi levado depois de sua morte, há pouco mais de dois anos.

O Cais das Artes, construção projetada por Paulo Mendes da Rocha, em Vitória, no Espírito Santo - Ciro Miguel/Folhapress

Iniciadas em 2010, as obras do Cais das Artes estavam previstas para serem finalizadas em apenas dois anos. No entanto, depois da falência da empresa construtora, questões judiciais entre o novo consórcio responsável e o poder público paralisaram os trabalhos em 2015. Desde então, o projeto, idealizado como o maior equipamento cultural do Espírito Santo –e um dos maiores do país– segue um canteiro de obras.

O governo do Espírito Santo prometeu, no fim de junho, retomar as obras, desembolsando R$ 163 milhões, além de recuperar as estruturas instaladas que foram danificadas, ao preço R$ 20 milhões. A obra deve ser entregue em cerca de três anos.

Visto a distância, o Cais das Artes está praticamente pronto. Os três volumes principais –um prisma horizontal para exposições, uma torre de apoio e um teatro– já foram concretados. A composição e simplicidade do conjunto remete às delicadas maquetes de papel feitas por Mendes da Rocha para idealizar grandes projetos, e nas quais navios de papel, também engenhosamente manufaturados pelo arquiteto, são indicadores da real grandeza.

Comparada aos edifícios espelhados da orla de Vitória, a fisicalidade opaca e o rigor formal do Cais das Artes impressionam. Se a arquitetura dos vizinhos é indiferente à baía atlântica, o projeto de Mendes da Rocha junto ao escritório Metro Arquitetos não tem cais só no nome. Ele é um espaço público desenhado em frente ao mar, reconciliando a cidade com a coreografia mecânica do porto.

As dimensões do Cais das Artes, portanto, não devem ser mensuradas pelas casas e ruas adjacentes, mas pela escala dos trabalhos do mar. Visto dessa perspectiva, é um projeto tão delicado como uma maquete de papel, que potencializa uma paisagem em que nada é estático.

Por suas aberturas e recortes se enquadram as montanhas de Vila Velha, cidade vizinha à capital capixaba, o vaivém dos navios mercantes, os ventos e as marés. Hoje, como o perímetro está todo cercado, o edifício aparenta ser um grande muro de concreto, bloqueando as vistas e o acesso da cidade à costa. É exatamente o oposto da porosidade imaginada pelos arquitetos.

As estruturas robustas de concreto, mesmo expostas às intempéries há quase uma década, resistem. A despeito desse abrigo resistente, os equipamentos de ar-condicionado, os motores de elevador e outros dispositivos técnicos já comprados para o funcionamento do complexo —uns já instalados, outros empilhados no canteiro de obras— vem sendo castigados pela maresia, com sinais de corrosão.

As estruturas de aço do edifício principal, protegidas por pinturas antiferrugem, por outro lado, parecem intactas. Em 2020, um ano antes de sua morte, Mendes da Rocha disse ao jornal A Gazeta do Espírito Santo que era "importante tirar o rótulo do inacabado".

Ainda que sem tirar o rótulo, a manutenção do que foi construído é tarefa árdua. Os funcionários vivem o seu dia a dia controlando acessos, fazendo limpezas e vistorias. Como a equipe é pequena e só a área expositiva tem 3.000 metros quadrados, bonecos uniformizados com equipamentos de seguranças foram espalhados pelo edifício para desestimular depredações, roubo de materiais e acidentes. Mesmo assim, resquícios de fogueira em alguns pontos indicam que a estrutura é ocupada como refúgio temporário.

Capacetes, uniformes, pregos no chão e escadas de madeira descrevem uma situação próxima de um canteiro de obras permanente. Em alguns momentos, o Cais das Artes parece evocar imagens do fotógrafo Robert Polidori em Tchernóbil, na Ucrânia, cidade abandonada às pressas depois do desastre nuclear.

Em outros, a obra incrementa situações efêmeras e surpreendentes do projeto, como o grande auditório para 1.300 pessoas ainda sem laje de cobertura, ao léu. Seu saguão insólito, voltado para o oceano como um cais que facilita o transporte para outras dimensões, faz parte da experiência teatral.

Ele parece encarnar os projetos cenográficos que o arquiteto capixaba criou para espetáculos no Theatro Municipal de São Paulo na década de 1990, como a ópera "Suor Angélica", de Giacomo Puccini, dirigida por Bia Lessa, dominada por "abismos, picos, frestas e veredas".

Para alguns desses espetáculos, o arquiteto elaborou desenhos evocando um surpreendente universo aquático de pontes, andaimes e embarcadouros, em que um navio de grande porte atraca na cena do teatro.

"Com ele, aprendi o que significava geografia cênica. Ele nunca construiu um cenário. Sempre sua criação era um espaço que obrigava a cena e os personagens a existirem de forma ativa", disse Lessa, na ocasião da morte do arquiteto.

Se essas são as possibilidades espaciais únicas das construções em andamento, e que tendem a desaparecer quando os edifícios ficam prontos, no Cais das Artes elas antecipam um programa que assume a condição de beira-mar.

O complexo é marcado por uma imaginação geográfica para a qual a relação entre cultura e natureza foi uma questão permanente, celebrando a existência ativa no espaço marinho do litoral brasileiro.

A construção retoma a visão urbana do seu precedente Projeto Baía de Vitória, também da década de 1990, que relacionava a sua cidade natal com um universo mais amplo, como Vila Velha, privilegiando o transporte dentro da baía e prevendo edifícios proporcionais à sua geomorfologia.

O Cais das Artes retoma, acima de tudo, a paixão do arquiteto pela água, algo que remonta a Vitória e aos trabalhos de seu pai, expoente brasileiro da navegação interior e de portos marítimos. É uma paixão que moldou, e foi moldada, pelo espírito criativo, crítico e inquieto do arquiteto com relação aos rumos coloniais e pós-coloniais das civilizações americanas.

Se completado, o Cais das Artes fecharia, portanto, uma espécie de círculo na trajetória do arquiteto, que foi capaz de desenvolver uma obra consistente, construída e projetada a despeito de todas as adversidades, incluindo duas décadas de ditadura militar que culminaram na sua cassação como professor da Universidade de São Paulo.

O Cais das Artes, construção projetada por Paulo Mendes da Rocha, em Vitória, no Espírito Santo - Ciro Miguel/Folhapress

O Cais das Artes não é o único projeto de Mendes da Rocha em risco. Suas escolas públicas foram desfiguradas por reformas pragmáticas e apressadas. A Casa Silveira Melo, em Piracicaba, no interior paulista, por exemplo, teve as fachadas envidraçadas, o concreto pintado e foi convertida, de modo irreconhecível, em churrascaria.

O ginásio do Clube Atlético Paulistano, a primeira grande obra do arquiteto, foi drasticamente alterado após a construção de paredes de alvenaria ao redor da cobertura circular. A restauração cuidadosa do edifício está, enfim, em andamento.

Se a doação do seu acervo de desenhos, documentos e objetos a Portugal causou grande indignação e revolta por parte da comunidade de arquitetos brasileiros, que viram o movimento como uma nova empreitada colonial, a descaracterização de alguns de seus projetos ou o abandono das obras de seus últimos edifícios, como Cais das Artes e a Praça dos Museus da Universidade de São Paulo, parece não comover da mesma maneira.

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