Como o mullet, mesmo considerado cafona, virou o corte de cabelo dos estilosos

Penteado popularizado nos anos 1980 vive novo auge, com aumento de buscas na internet e de pedidos nos salões

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Da esq. para a dir. Renata Lima, 28, Lukita Dj, 28, Bruno Sanches, 31, Mirian Navarro, 56, ostentam seus mullets, corte de cabelo que voltou a ser tendência Zanone Fraissat/Folhapress

São Paulo

Ele não sai da cabeça das pessoas. Mesmo tachado de feio, cafona e antiquado, lá estava ele na Virada Cultural, no festival Mita e até na edição deste ano do Oscar. O mullet pode ser acusado de muitas coisas, menos de não estar na moda.

O corte de cabelo foi célebre nos anos 1980, caiu no ostracismo no final da década seguinte, passou por uma redenção durante a pandemia e agora faz a cabeça dos fashionistas.

Da esq. para a dir. Renata Lima, 28, Lukita Dj, 28, Bruno Sanches, 31, Mirian Navarro, 56, ostentam seus mullets, corte de cabelo que voltou a ser tendência - Zanone Fraissat/Folhapress

A tendência pode ser confirmada em números. Em maio, pesquisas pelo termo mullet no Google cresceram 56% em comparação com janeiro. No Pinterest, as buscas aumentaram 50% no mesmo período. No Instagram, a hashtag acumula 1,2 milhão de menções. No TikTok, são 11 bilhões de visualizações.

A rede da dancinha tem, inclusive, perfis com conteúdo sobre esse corte que reúnem milhares de pessoas, como o da cabeleireira Ashley Medina. Com 700 mil seguidores, a profissional mostra o antes e depois de seus clientes ou, como prefere dizer, o processo de "mulletificação" deles.

"O que me ajudou a ganhar tantos seguidores foi estar no lugar certo na hora certa", diz Medina, que ostenta esse corte desde 2014. "Eu já era a louca do mullet e publicava vídeos quando ele voltou à moda após ter passado 30 anos sendo alvo de piada."

No salão em que trabalha, os pedidos aumentaram tanto que Medina não consegue mais dar conta da demanda sozinha e precisou passar parte da clientela para seus colegas. "Ele voltou a ser popular porque é divertido e de fácil manutenção. As pessoas estão ocupadas. Por isso, gostam de penteados rápidos e fáceis."

Salões do Brasil também viram os pedidos aumentar. Dona do Espacio Secreto, localizado no Jardim Paulista, zona oeste de São Paulo, Milly Olmos diz que percebeu o salto na demanda a partir de 2021.

"Muita gente que antes poderia fazer piada está aderindo", diz a cabeleireira, acrescentando que um dos trunfos desse estilo é a sua versatilidade. "Ele é democrático. Não tem gênero nem idade. Minha clientela vai da criança à mulher na faixa dos 50 anos."

A editora Mirian Navarro faz parte desse segundo grupo. Aos 56, decidiu usar o mullet para romper padrões relacionados ao envelhecimento. Mulheres que entram na menopausa, diz, costumam cortar o cabelo para aliviar as ondas de calor causadas pelas alterações hormonais. Com Navarro não foi diferente.

"Mas não queria me ver igual a todas as mulheres da minha idade. A gente acaba muito parecida, com um corte meio batidinho. Parece um molde", afirma. "Encontrei então uma alternativa que me deixou com estilo próprio." E esse estilo não passa despercebido.

A editora conta que, em espaços públicos, o corte é alvo dos olhares de outras mulheres. As mais velhas a encaram com estranhamento; as mais novas, com curiosidade. "Elas devem pensar ‘acho legal, mas será que eu faria também?’."

Ana Castro Mazzei decidiu que, sim, iria se render ao mullet. Há cerca de dois anos, a designer ostenta o penteado com orgulho apesar de já ter recebido comentários indelicados. "Tão bonita, por que fazer isso? Eu prefiro do outro jeito", diz ter ouvido.

"Meu marido gosta, mas brincava comigo me chamando de Chitãozinho. Mas tem esse lado meio Chitãozinho mesmo, né", diz ela, lembrando o cantor sertanejo que, ao lado de Xororó, ajudou a alçar o mullet à fama nacional na década de 1980.

Mazzei diz, porém, estar satisfeita com a escolha e considera que ela reflete um momento de segurança em si mesma. "Eu fiz sabendo que era um corte diferente. Então dou risada dos comentários. Não são os outros que têm que achar alguma coisa do meu cabelo. Sou eu mesma."

Curto, longo, crespo, liso ou cacheado. Seja como for, cabelo não é apenas um elemento estético, mas também um símbolo identitário. Autora de "O Livro do Cabelo", a escritora Leusa Araujo diz que a humanidade usou o penteado ao longo dos séculos para transmitir mensagens.

Ela explica que, no passado, mulheres casadas costumavam usar os cabelos presos, enquanto as solteiras deixavam as madeixas soltas. Já a trança era comum entre as meninas por ser associada à ideia de virgindade e contenção sexual. "Penteado demarcava quem você era e em que época da vida você estava."

No caso dos homens, o mais usual no começo do século 20 era o cabelo curto para passar confiabilidade. A partir dos anos 1960, a contracultura rompe com esse paradigma. Eles, então, começam a ostentar cabelos longos como uma forma de questionar os padrões vigentes, inclusive os de gênero.

"No Ocidente, mulher costumava usar cabelo comprido e homem, cabelo curto. De repente, ambos estavam de cabelo longo." É nesse contexto de transgressão que o mullet ganha força, popularizado por David Bowie —símbolo de androginia e de subversão estética.

"A ideia de ultrapassar o gênero voltou a ser muito importante atualmente, e esse corte permite que homens e mulheres usem os mesmos penteados. Ele é fluido."

Além da fluidez, o mullet pode ser cheio de ambivalência. "Ele transmite a mensagem de que você flerta com a rebeldia, mas, ao mesmo tempo, está integrado à cultura hegemônica", diz Barney Hoskyns, autor do livro "The Mullet: Hairstyle of the Gods", algo como penteado dos deuses, embora ainda não tenha tradução para o português.

No caso dos homens, diz ele, a parte de trás, longa, sinaliza uma certa insubordinação, enquanto a parte da frente, curta, demonstra obediência às normas sociais.

"É como se a pessoa dissesse ‘eu posso ter um trabalho tradicional e, ainda assim, não ser totalmente conformista, tenho um pé lá e outro cá'", diz o britânico, que lançou o livro sobre o corte de cabelo em 2000, momento no qual o estilo já era considerado uma espécie de crime fashion.

"Mas agora ele está em toda parte de novo, de Londres a Nova York, onde eu estive recentemente. Só que num modelo menos extravagante do que o tradicional", diz ele, acrescentando que o mullet não é uma invenção contemporânea. "No antigo Egito, já havia cortes similares."

Há quem considere, inclusive, que a "Ilíada", de Homero, menciona um parente distante do mullet. Na tradução em inglês, os guerreiros do povo abantes são descritos como tendo a franja raspada e o cabelo na parte de trás da cabeça comprido.

Segundo Hoskyns, o renascimento desse corte tem a ver com a predileção dos jovens por itens que eram considerados cafonas. "Vejo muitos deles na parte central de Londres usando roupas tidas como bregas, mas de um jeito descolado. A ideia é ser deliberadamente cafona, e o mullet se encaixa bem dentro dessa proposta."

O músico e produtor Bruniño, de 31 anos, diz que aderiu ao corte justamente por se identificar com o brega e com a moda dos anos 1980.

"Num momento da pandemia, resolvi dar uma repaginada no visual e escolhi o mullet por causa dessas referências. Queria algo meio brega futurista", diz o artista, que pintou um lado do cabelo de preto e o outro de rosa. "Eu sou o esquisito da balada. As pessoas olham de um jeito muito estranho e falam ‘nossa, quem é aquele doidão?’."

Mas ele não se deixa abalar. "Quando isso acontece, eu sinto que passei meu recado. Quero mostrar que existem pessoas diferentes no mundo. Pessoas que não se encaixam em padrões."

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