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Livros

Diários de Lúcio Cardoso meditam em livros e fé, mas podem ser maçantes

Católico e homossexual, mineiro autor de 'Crônica da Casa Assassinada' preferiu a reflexão introspectiva ao registro factual

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Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

Todos os Diários (vol. 1 e 2)

  • Preço R$ 139,90 cada volume e R$ 49,90 cada ebook; 448 págs. (vol. 1) e 424 págs. (vol. 2)
  • Autoria Lúcio Cardoso e Ésio Macedo Ribeiro (org.)
  • Editora Companhia das Letras

Lúcio Cardoso tinha 45 anos quando sintetizou em seu diário o tipo de existência que buscou ao longo de toda a sua trajetória. "Vida onde os acontecimentos sejam de ordem puramente espiritual —de certeza e de apaziguamento. Que outra desejar, além desta? De suas únicas ressonâncias é que se compõe o esforço de todas as maturidades."

Fazia alguns meses que ele havia concluído a redação de "Crônica da Casa Assassinada", romance considerado a sua obra-prima e que seria lançado em 1959, e seus diários mostram que se sentia, de fato, maduro.

homem de camisa polo branca posa sério na praia, contra o mar
O escritor mineiro Lúcio Cardoso em fotografia que estampa a capa da reedição de seus diários - Divulgação

O desejo de certeza e apaziguamento é um dos temas mais constantes nos dois volumes de "Todos os Diários", reedição aumentada e corrigida, pela Companhia das Letras, dos seus diários que já haviam sido publicados em 2012 e 2013.

Reunindo registros pessoais realizados de 1942 a 1962, o conjunto é fruto do trabalho do pesquisador Ésio Macedo Ribeiro e mostra como foram raros os momentos de pacificação diante dos embates íntimos vividos por Cardoso, nascido em 1912 em Minas Gerais e morto em 1968 no Rio de Janeiro.

As anotações fragmentárias versam sobre sua relação com a fé e os dogmas cristãos, suas leituras filosóficas e literárias, sua formação e expectativas como escritor —em perfeita conformidade com sua aversão à vida material, que surge nas constantes queixas sobre a necessidade de se ter dinheiro para sobreviver.

Cardoso se confessa ora desejoso de "cingir-se ao mínimo mundano possível", ora ávido de se entregar à existência terrena. "Quero amar, viajar, esquecer —quero terrivelmente a vida, porque não creio que exista nada de mais belo e nem de mais terrível do que a vida", ele escreve.

O conflito repõe a dualidade básica do catolicismo, religião que informa a visão de mundo do escritor e motiva longos trechos do diário. Há sequências dedicadas ao estudo e à interpretação da Bíblia, a assuntos como conversão e vocação religiosa, além de críticas pontuais à Igreja Católica.

Sobretudo ao longo da década de 1940, fica claro que a religião não é meramente uma questão de foro íntimo, mas uma escolha que implica uma forma de participar do mundo. As referências à Segunda Guerra Mundial são despolitizadas, e na política nacional interessa sobretudo a figura de Getúlio Vargas para o autor.

Próximo a escritores católicos reunidos em torno de Octavio de Faria —crítico do romance nordestino, a quem dedica a publicação de parte do diário—, Cardoso recusa um autor como Graciliano Ramos, "visceralmente materialista", afirmando que, em "Memórias do Cárcere", "não há uma visão inteira do homem, mas de seu lado mais imediato".

O escritor Lúcio Cardoso, autor do livro 'Crônica da Casa Assassinada' - Divulgação

Em meio a esses interesses, há pouco espaço para as observações cotidianas. Há reflexões penetrantes, ainda que breves, numa referência à praia de Copacabana em 1943 —"amor meu maior pela perfeição corporal, pelas coisas fúteis, pela matéria do corpo vivo, insofismavelmente vivo; pelo cheiro das podridões desinfetadas vindo do mar"— e no relato da visita à viúva de Cornélio Penna em 1958 —"não há morte para aqueles que não são amados, mas há uma única e que dura para sempre, para os que foram muito".

Também para a intimidade há pouco espaço. Assumidamente homossexual, Cardoso se refere a amantes por meio de iniciais e estende a ambivalência também ao amor e à paixão. "Todos os meus livros eu os fiz à margem de minhas paixões, quando minhas paixões é que deveriam viver à margem dos meus livros." Ele se confessa aliviado quando, na maturidade, a vida física já não cobra prazeres.

Os trechos narrativos, que não predominam sobre a meditação, podem sobressair. É o caso da lembrança, registrada em 1958, de uma noite em que cavalgou carregando um cabrito sacrificado e, no mesmo ano, do relato da morte e do sepultamento da mãe.

Sobre o tema que se torna mais e mais presente com o avanço do tempo, anota "à medida que as páginas avançam, maior se torna o número de mortos em torno dele". "É assim."

A inclinação para o aforismo, ou seja, a capacidade de formular frases curtas e de grande alcance, dá sustentação e ritmo à leitura, a qual, apesar disso, em variados momentos se torna maçante para os leitores não especialmente interessados no autor.

Esses de interesse mais amplo talvez estranhem ainda o tom que o autor assume. Com intenção declarada de publicar os diários, a tal ponto que se dirige a "vocês", Cardoso nem sempre é modesto na visão de si mesmo.

"Por momentos, quando estou muito calmo da vida, lembro-me de repente da minha ‘grandeza’, da minha genialidade. E então isso me parece surpreendente, acho isso engraçadíssimo."

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