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Escritora síria narra família sem homens que sofre traumas da guerra

Dima Wannus usa literatura potente e lírica para traduzir de maneira inequívoca a desintegração de um lar

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A Família que Devorou Seus Homens

  • Preço R$ 64 (176 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Dima Wannus
  • Editora Tabla
  • Tradução Safa Jubran

Com o terremoto que assolou o norte da Síria no início de fevereiro, todas as atenções foram postas no dano material, naquilo que desmoronou. Mas essa é apenas a parte visível —a superfície— do trauma que sua população vive há décadas.

O livro "A Família que Devorou Seus Homens", da síria Dima Wannus, expõe as partes invisíveis. O romance da autora de 41 anos narra com sensibilidade alguns dos efeitos sociais da guerra civil de seu país.

mulher morena com casaco bege sobre fundo infinito
A escritora síria Dima Wannus - Divulgação

Não é fácil resumir sua trama, porque o livro quase não tem uma, no sentido de um desenvolvimento linear. A narradora deixa claro já de início que está misturando o passado com o presente e que vem sofrendo para vislumbrar seu próprio futuro, entre crises. Vai amarrando uma memória na outra, em técnica proustiana.

O leitor descobre aos poucos que a família dela não tem homens. Foram devorados, como sugere o título. Morreram ou sumiram. Restaram só a protagonista, sua mãe, suas tias e suas primas. São elas que vivem os anos do regime autoritário da família Assad e o conflito civil que corrói a Síria desde 2011.

Wannus estreou em 2007 com a coletânea de contos "Tafasil", traduzido como "detalhes". No ano seguinte, publicou o romance "Kursi", cadeira, e chamou atenção com "Khaifun", amedrontados, que foi finalista do International Prize for Arabic Fiction, o principal prêmio literário em língua árabe, e traduzido para diversas línguas. Este "A Família Que Devorou Seus Homens" saiu em 2020.

O texto de Wannus não é explicitamente político, mas tem mensagens claras para quem lê as entrelinhas. A revolução de 2011 —que foi reprimida pelo regime, desencadeando a guerra civil— aparece em diversos momentos como pano de fundo. A intersecção entre literatura e política eram marcas também da obra de seu pai, o dramaturgo sírio Saadalah Wannus, conhecido por peças engajadas como "O Estupro" e "Sonhos Miseráveis".

No romance de Wannus filha, a política aparece na relação que a protagonista e sua mãe têm com a vida na diáspora síria em Londres. Entre avanços e retrocessos no tempo, ela conta que a família deixou Damasco durante a guerra, refugiou-se em Beirute e depois se espalhou por Londres e Paris.

É uma experiência infelizmente comum para muitos sírios, forçados a deixar seus lares. Segundo dados das Nações Unidas, há cerca de 6,8 milhões de refugiados sírios no mundo.

A fuga de Damasco afeta a mãe da protagonista de modo irreversível. Foi depois da partida que começou a misturar passado e presente. "Ela se apoiava no passado; aprisionava nele, vivia absorta, encantada entre as suas paredes", a narradora conta. "Eu vivia os meus dias à espera. Talvez esperasse o dia em que me libertaria das histórias da minha mãe. Esperava também deslizar do presente até o futuro."

O trecho revela, de modo eloquente, uma das consequências da guerra civil e do deslocamento forçado, que é esse desenraizamento. O trecho também explicita o abismo aberto entre mãe e filha, entre um apego ao passado e uma sede de futuro. São dilemas típicos dos imigrantes e refugiados.

O livro tem trechos tocantes, como a narrativa da doença que leva uma das mulheres mais carismáticas da família. Wannus tem uma escrita potente e lírica que traduz de maneira inequívoca as dores da protagonista e a desintegração de seu lar.

Como a personagem explica mais para o fim do livro, há sempre um receio de que as mulheres terminem de devorar seus homens e passem a mastigar umas às outras. São relações amorosas, às vezes; em outras, são ásperas, manchadas por rancores.

O recurso de mesclar passado com presente talvez se esgote no romance. O texto se confunde, em certos momentos, com uma coletânea de casos familiares. Mas mesmo esse cansaço formal parece ter uma função narrativa, ao afundar o leitor nas vidas dessas mulheres sírias traumatizadas —não por um terremoto, mas pela ditadura, pelo conflito, pela fuga e pela carência de futuros.

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