João Donato tocava piano como um mago que controla o tempo na ponta dos dedos

Músico era econômico e usava os silêncios entre os acordes para fazer o seu instrumento balançar muito além da bossa nova

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Na década de 1950, o piano de João Donato, morto nesta segunda-feira, aos 88 anos, já era único. Na sua infância, no Acre, onde nasceu, aprendeu a tocar acordeão e, quando participou da gênese da bossa nova, já tinha um jeito próprio de bater nas teclas, um estilo que ele não parou de desenvolver ao longo dos anos.

Apaixonado pelas melodias e pelos belos acordes, Donato foi um dos inventores da bossa nova, mas nunca ficou preso a ela. Não era um exibicionista de melodias intrincadas, mas fez o piano suingar como ninguém, com um groove delicado, sutil e irresistível. Foi um mago que tinha o poder de controlar o tempo na ponta dos dedos.

O músico João Donato em 1991
O músico João Donato em 1991 - Luis Paulo Lima/Folhapress

Numa carreira de mais de seis décadas, ele criou a levada que inspirou João Gilberto a estabelecer a batida da bossa nova e não parou mais. Sua estética fundamentalmente atravessa o jazz, mas incorpora influências do baião, da música latina, do funk americano, do rock psicodélico, da admiração da natureza e da camaradagem.

Quando Edu Lobo viu João Donato tocar pela primeira vez, num dos encontros que geraram a bossa nova no Rio de Janeiro, ficou impressionado. "Nunca tinha visto Donato. Vi aquele piano dele, que já era uma coisa completamente diferente dos outros", ele diz na série "O Canto Livre de Nara Leão", do Globoplay.

Mas Donato não estava exatamente interessado em ingressar em movimentos estéticos. No mesmo documentário, o músico afirma que aquela maneira de tocar piano, para ele, "era simplesmente a maneira com que a gente fazia as coisas, já em 1950".

"Acredito também que seja uma maneira que os jovens sempre faziam uma coisa na época que eles viveram e achavam que era diferente", diz. "E eles se revoltaram contra as coisas pré-estabelecidas, dos mais velhos. Só que, no nosso caso, essa coisa foi chamada de bossa nova."

Aquela maneira de fazer as coisas foi uma das principais influências para João Gilberto criar a batida, no violão, que definiu a bossa nova. O baiano era obcecado pelo piano do acreano e, a partir de sua levada particular no instrumento, desenvolveu a estética determinante para o gênero que despontou nos anos 1960.

Mas Donato era tão diferente que, mesmo tendo sido um dos inventores da bossa nova, teve de se mudar para os Estados Unidos em 1959, já que não conseguia emprego nas boates do Rio de Janeiro.

Lá, se viu num limbo —era jazzístico demais para tocar música brasileira, mas brasileiro demais para tocar jazz. Acabou conseguindo um emprego numa orquestra de músicos cubanos, incorporou um sabor latino que nunca mais saiu de sua obra.

O pianista já tinha mostrado suas credenciais no disco "Chá Dançante", de 1956, mas é em "Muito à Vontade", seu álbum de 1962, que a primeira fase de sua obra foi melhor representada. O registro traz o acreano fundindo a bossa nova e o jazz com um balanço fascinante.

Em 1970, quando lançou o disco "A Bad Donato", passou longe de soar como um bossanovista. Mesmo nunca tendo abandonado algumas premissas do gênero em sua maneira de tocar, ele trazia um groove acelerado inspirado por James Brown, num registro funkeado e lisérgico.

O álbum tem arranjos de Eumir Deodato e sintetizadores —soa como uma pedrada. Com uma pegada experimental e ecos do rock psicodélico, Donato toca piano como se seus dedos se movimentassem na velocidade da luz em músicas como "Mosquito". Em outras faixas, como "Malandro", é como se ele desse um banho de LSD na bossa nova.

Para compreender a estética de Donato, é necessário ir além das melodias cândidas das quais era mestre. Tão importante quanto as harmonias que ele desenhava era a cadência às quais as submetia, o domínio dos instantes de silêncios que precediam e sucediam cada acorde, o movimento que gerava ao bater nas teclas. Donato era econômico, e sua magia estava na escolha precisa de cada nota que tocava, sem espaço para desperdícios.

No disco "Quem É Quem", de 1973, ele se revelou também cantor, profundamente influenciado pela calmaria do canto de João Gilberto. Mas as palavras importavam muito menos para o acreano, que usava a voz mais como um instrumento musical, quase como se criasse uma encarnação dadaísta da bossa nova —estilo encapsulado no "diriguidin" de "A Rã", em parceria com Caetano Veloso.

Nessa época, Donato passou a colaborar ainda mais com artistas brasileiros, como Marcos Valle e Eumir Deodato. Com o último, ele gravou "Donato Deodato", de 1973 e o trio assina em conjunto a magistral "Não Tem Nada Não", lançada por Valle no mesmo ano. Houve ainda colaborações com Caetano e Gilberto Gil, numa lista interminável que vai de Marcelo D2 a Bixiga 70 e Tulipa Ruiz, passando pelos Tincoãs, Martinho da Vila e Marisa Monte.

A partir dos anos 1970, o piano de Donato se tornou uma presença constante em diversos álbuns da MPB, um dos pilares da ideia de música brasileira até hoje exportada para o exterior. Se nos anos 2000 ele diminuiu a frequência de criação, ainda assim lançou pérolas como os discos "Donato Elétrico", de 2016, e "Sintetizamor", parceria eletrônica e bem-humorada com o filho, Donatinho, do ano seguinte.

Sua última grande parceria foi em "Síntese do Lance", álbum feito ao lado de Jards Macalé, uma ode à vida mansa com um entrosamento que jorra pelas dez faixas lançadas no ano retrasado. Em agosto passado, ele ainda lançou "Serotonina", o último disco de sua carreira.

Na faixa "Órbita", ele canta que está "com a cabeça no ar e os pés no chão", uma imagem que parece resumir tudo aquilo que ele representou quando se sentou ao piano desde os anos 1950 até hoje —o encontro único das melodias que fazem a imaginação viajar com a cadência que faz o corpo balançar. Um senhor do tempo a serviço da música brasileira.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.