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Artes Cênicas

Maratona de óperas tem boa 'Wozzeck' e azeda Mozart e Stravínski

Festival d'Aix-en-Provence deste ano, na França, incentivou a criatividade, mas qualidade das apresentações variou

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João Marcos Copertino Pereira

Crítico de ópera e teatro e doutorando em literaturas românicas na Universidade Harvard

Aix-en-Provence (França)

Há 75 verões, o Festival d'Aix-en-Provence, na França, é famoso por redefinir os paradigmas de como encenar ópera. Avesso às montagens tradicionais, o evento faz pouca cerimônia para mudar os enredos dasobras em nome de novas perspectivas dramatúrgicas.

É a terra do chamado "Regietheater", o diretor de ópera intervencionista que muda toda a trama a seu bel-prazer. Aix já teve um "Tristão e Isolda" em um vagão de metrô e uma dinâmica de RH que se tornava uma récita de "Carmen". A fórmula funcionou, e hoje o festival é tido como o mais inovador da Europa.

Festival de Música em Aix-en-Provence
Nicolas Lormeau, Sefa Yeboah, Cédric Eeckhout e Jordan Rezgui na 'Ópera dos Três Vintéis' - Jean-Louis Fernandez/Divulgação

Nesta edição, as polêmicas estão dentro e fora do palco. Pierre Audi, diretor do festival, muito bom de papo, convenceu uma série de grandes diretores a soltarem suas asinhas.

As contas são quase todas pagas pela bilionária Aline Foriel-Destezet. Fanática por ópera, ela assina cheques de milhões como se bebesse água. O Liberátion já diz que ela é a ministra não oficial da música. Há quem torça o nariz —melhor seria se o governo pagasse tudo—, mas Aix sempre foi um festival financiado pelo mecenato.

É consenso que a montagem de "Wozzeck", ópera expressionista de Alban Berg, é o ponto alto do festival. Sob a direção do aclamado Simon McBruney, a história é transportada para a Alemanha Oriental, agradando gregos e troianos.

Wozzeck, papel do barítono Christian Gerharher, nunca sai de cena, vendo todas as maldades que fazem pelas suas costas. A regência do mítico Simon Rattle e a sonoridade precisa da Sinfônica de Londres elevam o espetáculo a quase perfeição.

Festival de Música em Aix-en-Provence
Matthieu Toulouse com o coro de câmara da Estônia em 'Wozzeck' - Divulgação

No campo da música contemporânea, George Benjamin estreia a sua "Picture a Day Like This". A ópera funde os autos morais medievais com um thriller psicológico. Tudo fica ainda mais lindo com o protagonismo da meio-soprano Marianne Crebassa, uma sensação nos palcos franceses.

O festival teve seu momento de "Nasce uma Estrela" em "Otelo", de Giuseppe Verdi. Jonas Kaufmann —o mais badalado tenor da atualidade— ficou doente. O tenor substituto, Arsen Soghomanyan, encantou a crítica e o público com uma voz que parece vinda dos anos dourados. Como a ópera foi em versão de concerto, ninguém sabe se o cantor armeno sabe atuar, mas todos aprenderam direitinho a soletrar seu nome.

Mas nem tudo são flores. A montagem de "Così Fan Tutte", de Mozart, foi um azedume. Tentando inovar, o diretor Dimitir Tchernakiov trocou os habituais heróis juvenis por três casais sexagenários. O resultado é enfadonho e sem sentido. Até o filme "Closer - Perto Demais", de 2004, dirigido por Mike Nichols, fez um serviço melhor com a ópera do gênio de Viena.

A "Ópera dos Três Vintéis", encenada por Thomas Ostermeier e a trupe da Comedia Francesa, é um convite ao tédio. Parece que a elite do teatro francófono não sabe que não se pode fazer revolução com Brecht e Weill a € 300.

Talvez a polêmica mais injusta do Festival tenha sido a versão em "ópera" dos "Balés Russos" de Igor Stravínski, com projeções de três filmes "inovadores" simultaneamente. Ainda que balé não seja ópera, ambos sempre viveram em promiscuidade.

A Orquestra de Paris fez seu trabalho com a regência do jovem prodígio Klaus Mäkelä, mas o problema foram os filmes. Rebecca Zlotowski fez um novo corte de "Além da Ilusão", de 2016, para ilustrar o pássaro de fogo. O que já era péssimo ficou horrível.

A câmera intencionalmente estrábica de Bertrand Mandico fez de Petrushka uma arenga insuportável. A estrela da noite foi a ótima versão da "Sagração da Primavera" pela cineasta grega Evangelia Kranioti.

Festival de Música em Aix-en-Provence
Klaus Mäkelä regendo os 'Balés Russos', de Igor Stravínsky - Jean-Louis Fernandez/Divulgação

Numa versão que funde o primitivismo com o colonialismo, Kranioti mostra cenas que juntam tanto o Carnaval carioca quanto as geleiras do norte da Noruega. Foi lindo de assistir, mas teve gringo que reclamou de ver os rostos dos indígenas e prostituas transexuais cariocas. Joshua Barone, no New York Times, disse que era a coisa mais sem gosto que já viu. Como disse Caetano Veloso, "é que Narciso acha feio o que não é espelho".

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