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Livros

Felipe Charbel escreve sobre o tio para falar de si, mas rejeita autoficção

'Saia da Frente do Meu Sol' explora como as constrições do desejo limitam a vida, mas é leve como uma conversa

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Luciene Azevedo

Professora de teoria literária da Universidade Federal da Bahia

Saia da Frente do Meu Sol

  • Preço R$ 54,90 (136 págs.); R$ 38,90 (ebook)
  • Autoria Felipe Charbel
  • Editora Autêntica Contemporânea

Dois motes estruturam a leitura de "Saia da Frente do Meu Sol", segundo livro do professor de história Felipe Charbel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O primeiro deles aparece já no título: a referência ao cínico Diógenes, que teria pedido a Alexandre, o Grande, admirador de sua filosofia, para deixar de fazer sombra a seu banho de sol. O outro diz respeito à investigação sobre as diversas camadas de uma subjetividade, ao escrutínio do desejo.

homem branco barbado sorri de braços cruzados em meio a matagal
O escritor Felipe Charbel, autor de 'Saia da Frente do Meu Sol' - Ieda Magri/Divulgação

Charbel, que resiste à ficção e também à autoficção, decide explorar os vestígios da vida de um tio, com quem chega a compartilhar o mesmo teto durante a infância, mas para o qual, naquele momento, não dá muita bola.

O interesse por outros membros da família —a mãe, a avó, o pai— já tinha se transformado em interrogação narrativa antes. Com esse livro, o autor expande um pouco mais a especulação pela vida e pelo desejo. O seu, o de seu tio. Ou como afirma, citando a Pierre Michon: "falando dele é de mim que falo".

"Janelas Irreais", lançado em 2018, é um experimento com um diário de leituras. Na narrativa atual, o autor explora também outras formas. Além das entradas de diário, há citações retiradas de leituras, fragmentos de um conto fracassado e muitas fotos.

A dificuldade de responder o que o livro é —uma novela? Um compilado de entradas de diário? Um ensaio biográfico?— tem a ver com a interrogação que a linguagem lança sobre a vida, sobre como se vive uma vida.

Quem é o tio Ricardo? "Dândi do subúrbio" ou o "entulho humano"? O "malandro emérito" ou o solitário, que vivia no quartinho de tralhas nos fundos do apartamento da Tijuca, roncando ou ouvindo seu radinho de pilha, sofrendo de uma paralisia nas pernas causada por uma doença não diagnosticada com precisão?

Essas diferentes camadas da identidade são responsáveis pela narrativa camaleônica, que faz um gênero entrar por dentro do outro. Mas tudo isso é feito com leveza. O leitor tem a sensação de participar de uma conversa: de Charbel com ele mesmo, com o tio, com o leitor, com as leituras que o autor fez e anotou, mostrando um pouco do processo de produção da escrita.

Escrevendo com o pouco que sabe do tio (e de si mesmo?), o livro magnifica o ordinário de qualquer vida, recupera a memória do olhar infantil e o mescla à reflexão adulta ao elaborar um contraponto à murmuração dos parentes sobre o tio Ricardo, seus hábitos, sua sexualidade. "Seu tio era um homem de vícios; se amigou dos cantores da época; até que não dava pinta."

Charbel é consciente do experimento que faz e está atento às formas narrativas contemporâneas que exploram arquivos, reproduzem documentos e imagens junto ao texto, misturam gêneros, tateiam uma forma inespecífica. Seu livro tem tudo isso, como sugere a sacada irônica de um amigo não nomeado: "Hoje em dia é assim que se faz, tem que ter um arquivo".

O livro tem pouco de ficção, mas tampouco se aferra à verdade documental. A epígrafe retirada da certidão de óbito de Ricardo ("Não deixou filhos, não deixou bens, não era eleitor e faleceu sem testamento conhecido"), sua eloquência silenciosa, escava um território ambíguo entre o ficcional e o biográfico, expandindo os limites de ambos.

Um bom exemplo disso é o conjunto de fotos que recheiam o livro e que são olhadas, descritas, lidas no último capítulo. Ao revelar o olhar que olha as fotos, Charbel vê nelas o corpo do tio, seu desejo —guardado no fundo do armário ou imaginado pela narrativa?.

Apesar de escamotear qualquer pulsão interpretativa para a existência do tio, o leitor sai com a sensação de que a dúvida —ou o medo da crítica— por entregar-se ao desejo é o grande desafio do que chamamos viver:

"Não temos a menor chance de sair dessa armadilha que um desgraçado qualquer armou para a gente (ou que montamos para nós mesmos, não faz a menor diferença)."

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