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Livros indígenas

'Indígenas de Férias' escapa de um estereótipo para logo cair em outro

Autor busca distância da 'paralisia da autenticidade', mas confina a identidade dos povos originários ao passado

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Gabriel Rocha Gaspar

Jornalista, é mestre em literatura pela Sorbonne Nouvelle Paris 3

Indígenas de Férias

  • Preço R$ 89,90 (320 págs.); R$ 64,90 (ebook)
  • Autoria Thomas King
  • Editora Dublinense
  • Tradução Davi Boaventura

Eis um título literal. Mais adequado que "Indígenas de Férias", só se a tradução não tivesse se rendido a uma certa correção política que o próprio autor evita no título original, "Indians on Vacation".

Thomas King, escritor, professor, fotógrafo e ativista americano radicado no Canadá, disse que queria mesmo brincar com o estereótipo. Por que soa estranho indígenas fazendo turismo? Porque na iconografia ocidental, indígena só existe cravado na pouca terra que resta a ele, encerrado num processo estanque de morte cultural. Se o livro fosse traduzido para "Índios de Férias", esse confronto do autor com a ideia pré-concebida do leitor seria tão exacerbado quanto no original.

pintura de estátua de homem indígena em frente a cidade colorida
Ilustração de Luísa Zardo para a capa do livro 'Indígenas de Férias', feita em colaboração com Truduá Dorrico - Luísa Zardo/Divulgação

Não seja por isso; o embate contra o estereótipo permeia o livro todo. Afinal, "autenticidade é uma das ideias que os brancos usam para nos paralisar", como afirma uma das melhores personagens indígenas do livro, cuja aparição é frustrantemente passageira.

Os protagonistas são um casal de aposentados, Blackbird Mavrias e Mimi Blackfoot, inspirados no próprio King e em sua companheira, Helen Hoy. Como o autor, Blackbird é parte grego, parte cherokee. É um ex-jornalista depressivo, que enfrenta um bloqueio criativo. E, como Hoy, Mimi é uma artista plástica apaixonada por viagens.

Ela arrasta o marido por pontos turísticos da capital tcheca, Praga, fica indignada com o abandono de refugiados sírios em um terminal de Budapeste, convence o homem a vasculhar um velho registro cartorial de uma ilha grega à procura de um ancestral.

Ele reclama. Ou divaga —seja pela própria cabeça, seja pelo passado, em que o repertório cultural indígena é realçado. No tempo presente, o que sobressai é a outra identidade do casal —classe média de centro-esquerda, do norte global.

E nisso reside tanto o trunfo quanto o calvário do romance. Se, por um lado, o autor escapa da "paralisia da autenticidade", por outro, acaba por confinar a identidade indígena ao passado.

homem indígena grisalho com óculos de grau
O escritor Thomas King, de 'Indígenas de Férias' - Divulgação

Há uma estreita válvula de escape para atualizar a ancestralidade. Permeia a viagem a busca por rastros de um tio de Mimi, Leroy Bull Shield, que teria partido com uma trupe de circo europeia mais de um século antes, carregando um artefato sagrado de sua aldeia.

Mas, ainda que a procura seja presente, Leroy também é uma figura do passado, um personagem de si mesmo, cuja última atividade conhecida foi viver o "índio" em um espetáculo de faroeste. Com o elemento indígena conjugado no pretérito, o protagonista acaba reduzido a um gringo qualquer, preso na paranoia securitária, sem grandes interesses culturais, políticos ou sociológicos sobre o lugar visitado. Seus sentidos captam o familiar mais que o novo —a língua inglesa, os standards musicais, a comida habitual etc.

É aí, no entanto, que brilha a coprotagonista, Mimi, muito mais vívida, interessada e criativa que Blackbird. Ela identifica os demônios do marido e os batiza com nomes de gente. Eugene é a autodepreciação, Kitty é o ímpeto para a catástrofe, as gêmeas Didi e Desi são depressão e desesperança; e Chip empurra o protagonista para a autodestruição.

Cada um tem suas características físicas, seu senso de humor peculiar, seu jeito de falar e agir. E, juntos, funcionam como um coro grego que, no lugar de delinear a moral da história, desmoraliza o protagonista de forma tragicômica. Assim, as digressões temporais constituem o caráter indígena e as psicológicas ganham contornos de teatro grego, encerrando em Blackbird as ancestralidades do autor-protagonista.

Ao mesmo tempo em que constrói com sagacidade esse DNA diverso, esse recurso narrativo gera um vácuo de tempo presente, parcialmente preenchido pela qualidade dos diálogos. São eles que montam a cama de humor ácido sobre a qual a rabugice e o niilismo de Blackbird enfrentam e namoram o otimismo idealista e bem-humorado de Mimi.

É uma interação tensa mas amorosa, que acaba por construir a embarcação do que seria, sem isso, uma coleção de histórias meio inacabadas, que flutuam cercadas por uma moldura europeia.

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