No esteio do que já tem sido considerado um movimento e chamado de "novo boom" ou de "gótico latino-americano", a editora Darkside publica a edição brasileira de dois livros da argentina Agustina Bazterrica: "Saboroso Cadáver" e "Dezenove Garras e Um Pássaro Preto".
Refiro-me à literatura predominantemente feita por mulheres atualmente, que caminha nas fronteiras entre o fantástico, o horror e a distopia em nosso continente.
O primeiro dos títulos é um romance distópico, em que a carne dos animais do mundo todo está contaminada por um vírus que a torna mortal a seres humanos. Assim, passa-se a criar humanos em abatedouros, de maneira semelhante ao que acontece hoje com animais, para que sirvam de alimento a outros seres humanos.
O segundo é um livro de contos cujos episódios caminham entre o cotidiano e o horror, sem que haja qualquer desnível entre esses dois aspectos.
Da narrativa do romance "Saboroso Cadáver", destaca-se o fato de que, para que a situação de consumo massificado de carne humana por humanos passe a ser considerada normal, é preciso, antes de tudo, que haja um trabalho de "confisco" da linguagem por parte de um governo autoritário. Proíbe-se o uso do termo "canibal", a fim de que o conceito seja esquecido.
Bazterrica mobiliza, assim, discussões filosóficas sobre o papel da linguagem —e da recusa ao seu utilitarismo— no presente histórico, o período que alguns chamam de antropoceno e outros de capitaloceno —em que se testemunha o esgarçamento da ética.
Além disso, a argentina coloca em evidência que o mesmo discurso científico que se arroga o estatuto de verdade, com sua linguagem pretensamente objetiva, também pode ser usado —como efetivamente foi e é— para desumanizar, fazendo triunfar o projeto de mundo em que só há duas opções: comer humanos ou ser comida deles.
No verbete "linguagem" do "Dicionário Abreviado do Surrealismo", Paul Éluard diz: "Precisamos de poucas palavras para exprimir o essencial, precisamos de todas as palavras para torná-lo real. As palavras vencem".
Bazterrica demonstra consciência do jogo entre essencial e real, que só se joga com todas as palavras, transformando questões do presente em uma ficção enérgica, simultaneamente chocante e prazerosa.
Os contos de "Dezenove Garras e Um Pássaro Preto" bebem da extensa tradição de contos fantásticos da Argentina, ecoando Silvina Ocampo, em seu gosto pela desestabilização, e Cortázar, em sua forma esmerilada, seu "nocaute".
Com recursos narrativos que evocam a colagem, a narrativa em abismo e imagens surrealistas, os contos ainda são capazes de provocar o riso. Para além do medo e do horror, Bazterrica não deixa perder de vista que, no meio de toda tragédia —política, estética e social—, sempre há quem produza comédia, por mais bufona que ela se apresente.
Nesse livro, a autora parece querer demonstrar que o terror das grandes catástrofes, que parece mover a literatura contemporânea na literatura latino-americana, não está dissociado do das "pequenas" catástrofes —a exploração sexual infantil, a objetificação do corpo feminino, a culpabilização da vítima, o feminicídio etc.
Isto é, assim como o privado torna-se público —uma das máximas das lutas feministas—, o privado torna-se também global, a partir do momento em que a desumanização perpetrada contra uns é a ruptura da ética com todo o planeta, como apontam as reflexões ecofeministas contemporâneas.
Viver em zonas de perigo como a América Latina faz do medo um afeto familiar. Ler e escrever o medo podem servir como uma espécie de construção de linguagem e imaginação conjuntas.
Ambos os títulos de Bazterrica chegam como um reforço que dialoga formalmente com tradição da literatura latino-americana e podem ser pensados como antídotos à melancolia em tempos de confisco do horizonte de futuro.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.