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Livros Argentina

Jorge Baron Biza supera as mortes de sua família com grande literatura

Jornalista e escritor argentino dá uma aula de como transformar a tragédia familiar em obra de primeira linha

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Alex Castro

Escritor, é autor de 'Atenção.' e 'Mentiras Reunidas'

O Deserto e Sua Semente

  • Preço R$ 74,90 (232 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Jorge Baron Biza
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Sérgio Molina

Há muitas tragédias na origem de "O Deserto e Sua Semente", de Jorge Baron Biza. Mas esse romance, enquanto literatura, é maior, mais forte, mais real do que todas elas.

Em 1964, durante uma reunião para assinar o divórcio, o pai do autor jogou ácido sulfúrico no rosto da mãe. Ela, acompanhada do filho Jorge, de 22 anos, foi para Milão, enfrentar anos de cirurgias restaurativas. O marido no dia seguinte se matou com um tiro na cabeça, o primeiro de muitos suicídios.

Capa do livro 'O Deserto e sua Semente', do argentino Jorge Baron Biza
Capa do livro 'O Deserto e sua Semente', do argentino Jorge Baron Biza - Divulgação

Em 1978, a mãe se atirou do mesmo apartamento onde sofrera o ataque e onde o pai se matara. Dez anos depois, em 1988, foi a vez da filha caçula morrer, por meio uma overdose.

Escreveu Jorge Baron Biza: "Recebi uma enxurrada de acolhimento quando aconteceu o primeiro suicídio. No segundo, a enxurrada se transformou num oceano oscilante e sem horizonte. Agora, depois do terceiro, as pessoas correm para fechar as janelas quando entro em um apartamento alto."

Outros dez anos mais tarde, em 1998, após ser rejeitado por várias editoras, Biza publicou por conta própria a primeira edição de "O Deserto e Sua Semente".

Em 9 de setembro de 2001, Jorge também se atirou da janela —ao contrário do que afirma a orelha da edição brasileira, não do apartamento onde morreram seu pai e sua mãe, em Buenos Aires, mas do seu próprio, em Córdoba.

Boa parte do livro foi escrito em cocoliche, um dialeto argentino que mistura o espanhol com o italiano. Para o autor, o cocoliche era "uma terra da liberdade, onde não se pode cometer erros", pois "não há dois cocoliches iguais".

Naturalmente, se a instabilidade de tantos registros linguísticos torna a obra mais rica, ela dificulta e muito a vida do tradutor. Nesse quesito, Sérgio Molina merece parabéns pelo excelente trabalho.

Excelente também a decisão de lançar esse livro no Brasil de hoje, 25 anos depois de sua publicação original, mas bem a tempo de servir como exemplo para nossa atual safra de autoficções.

O escritor e jornalista argentino Jorge Baron Biza
O escritor e jornalista argentino Jorge Baron Biza - Ramiro Pereyra/Divulgação

Baron Biza dá uma aula de como transformar a tragédia familiar em literatura de primeira ordem. Nunca condescendente, nunca se dando tapinhas nas costas, nunca querendo pagar de bom moço, nunca virando o rosto à dor, Baron Biza encara a realidade de sua família: o crime hediondo do pai, o corpo destruído da mãe, a própria misoginia violenta dentro de si.

O que faz da arte algo tão potente e universal? O que faz de um livro uma obra-prima? É só através da arte, escreveu o antropólogo americano Ernest Becker, que o indivíduo consegue criar algo maior que si mesmo e, assim, superar a própria morte. Pois foi essa batalha que Baron Biza encampou: ele olha para as vidas e as mortes de sua família e, pela coragem de seu testemunho, transforma esse olhar em arte.

Ao mudar os nomes e os detalhes de uma tragédia pública e bem conhecida, "O Deserto e Sua Semente" não se permite ler como nenhum "auto": nem como autobiografia, nem como autoficção. O leitor sabe que, apesar de baseada na vida real (pois como não?), trata-se de uma obra de arte poderosa e independente que se basta por si só.

Para Baron Biza, um dos maiores perigos da autobiografia, junto com a complacência, era reduzir tudo a fofoca. A saga de sua família, dizia ele, era um sol negro que tragava tudo e impedia que o romance fosse apreciado por seus méritos literários. Cabe a nós, leitores, não cair nesse erro.

Em seu único romance publicado, o autor realizou todo o potencial da melhor literatura: transformou a sua dor, e a de sua família, em um texto que vai perdurar enquanto existirem pessoas interessadas em pessoas.

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