Isabel Allende escreve uma ode a imigrantes meio século depois do golpe que a exilou

'O Vento Sabe meu Nome' une histórias de refugiada da América Latina ao Holocausto nos 50 anos do golpe no Chile

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Detalhe da ilustração de Pierre Mornet para a capa de 'O Vento Sabe Meu Nome', de Isabel Allende

Detalhe da ilustração de Pierre Mornet para a capa de 'O Vento Sabe Meu Nome', de Isabel Allende Divulgação

Santiago

"Este aqui fala sobre migrações, no estilo Isabel Allende, vocês sabem", diz a vendedora a uma dupla de argentinos que entra numa livraria do bairro Lastarria, em Santiago, para perguntar sobre o novo livro da escritora chilena radicada nos Estados Unidos.

Cabem muitas interpretações ao conhecimento atribuído, na ocasião, aos leitores, mas é certo que compõem o estilo de Allende, de 81 anos, a narrativa centrada em personagens femininas, os dramas familiares e um leque extenso de referências à vida da autora. E a seu mundo mágico.

A escritora chilena Isabel Allende, de 81 anos
A escritora chilena Isabel Allende, de 81 anos - Lori Barra

Desta vez, a política migratória que, sob o governo Trump, separou milhares de crianças imigrantes de seus pais na fronteira sul dos Estados Unidos divide as páginas do recém-lançado "O Vento Sabe meu Nome" com relatos do Holocausto nazista. A versão em português é publicada pela Bertrand Brasil, selo da editora Record.

A obra chegou ao país natal de Allende no final do primeiro semestre acompanhada do boom de lançamentos que versam sobre os 50 anos do golpe militar que relegou ao Chile 17 anos de ditadura, efeméride que se completa no dia 11 de setembro. As obras se mesclam na entrada de livrarias, entre destaques recomendados e mais vendidos, e talvez por isso houvesse a velada expectativa de que um dos principais nomes da literatura em espanhol abordasse esse capítulo triste da história.

Allende não o fez —ao menos não de modo direto. Mas, no livro centrado no drama do desterro e da migração forçada, há uma associação singela com a história da escritora.

Ela própria, afinal, viveu com sua família o exílio forçado pela ditadura de Augusto Pinochet. "Acredito que o fato de ter sido uma eterna migrante me inclina a simpatizar com aqueles que têm de deixar sua terra e buscar asilo em outra parte, onde muitas vezes não são bem recebidos", diz ela, por email, numa entrevista que se limitou, porém, a temas do novo livro.

A espinha dorsal da narrativa está em Anita Díaz, menina salvadorenha cega que, ao lado da mãe, fez o périplo migratório da pequena nação da América Central até os Estados Unidos, onde sob a política de Trump, alvo de denúncias de violação de direitos humanos, ela se viu sozinha.

O paradeiro da mãe de Anita, uma mãe solo como tantas outras na América Latina, é um dos mistérios da obra, e, até que isso seja revelado, os caminhos da menina se cruzam com o representante de uma outra onda migratória que hoje conforma a sociedade americana. Ele é Samuel Adler, musicista, um sobrevivente da Noite dos Cristais em 1938, na austríaca Viena, o marco inicial da perseguição dos nazistas aos judeus.

Samuel é salvo pela operação conhecida como Kindertransport, que levou meninos da Alemanha para o Reino Unido —já adulto, o protagonista de Allende vai aos Estados Unidos, onde passa a viver.

As duas histórias, separadas por oito décadas, refletem os traumas e as profundas transformações que a migração forçada relega às crianças. Pelo drama escalado que representa o desterro na infância, Isabel Allende, uma autora que sempre põe um pouco de si em suas protagonistas, aponta diferenças com Anita.

"Também fui uma menina solitária e muito apegada à minha mãe, que me refugiava na minha imaginação, mas não posso me comparar com Anita. Além de perder sua mãe e sua família, ela também sofre porque é cega."

Pressionada pela ditadura militar, a filha de um dos primos do presidente deposto Salvador Allende, com quem compartilhava apenas escassos jantares e piqueniques de família, mas também o então infame sobrenome, foi viver na década de 1970 na Venezuela, à época um país em pleno crescimento econômico graças à riqueza do petróleo —cenário bastante diferente do atual, com o país sendo palco da mais grave crise migratória de todo o continente.

A esse período, nada romantizado em seus relatos, Allende se refere como uma época de enormes desafios, mas também de resiliência. A despeito do distanciamento que a autora tenta marcar, "O Vento Sabe meu Nome" traz um emaranhado de outras referências à sua trajetória.

As conexões vão do drama do abuso sexual —do qual foi vítima ainda durante sua infância no Chile— à criação dos mundos mágicos como refúgio psíquico desse trauma.

"Anita é uma menina assustada, solitária e traumatizada, as outras são meninas com família, amor, segurança; talvez o único em comum seja a imaginação", diz a autora, sobre a personagem que criou inspirada numa história real. "O trauma que esses meninos [migrantes] sofrem é brutal, muitos nunca se recuperam por completo, mas a experiência, às vezes, faz com que se tornem fortes e resilientes."

Numa ode aos direitos de imigrantes e refugiados nos Estados Unidos, país onde está radicada desde os anos 1990, a chilena faz também a defesa da imaginação como válvula de escape para a dor. E nega levantar bandeiras com o livro. "Ao escrever um romance, quero apenas contar uma história. Minha intenção não é pregar ou dar uma mensagem", ela afirma.

Ainda assim, seu novo romance ecoa uma mensagem clara num tempo em que a migração molda o presente e o futuro. Cinco anos após o fim da política de separação das crianças migrantes de seus pais nos Estados Unidos, há ao menos 745 menores que ainda não reencontraram suas famílias e seguem sob a tutela do Estado, segundo números oficiais.

O Vento Sabe meu Nome

  • Preço R$ 69,90 (224 págs.)
  • Autoria Isabel Allende
  • Editora Bertrand Brasil
  • Tradução Ivone Benedetti
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