Descrição de chapéu Artes Cênicas

Peça encena conto de Plínio Marcos sobre violência em prisões ao som de hip-hop

'Inútil Canto e Inútil Pranto dos Anjos Caídos', escrito em 1977, narra drama do cárcere no Brasil com intensidade extra no palco

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São Paulo

Eram 25 homens espremidos, empilhados e esmagados de corpo e alma em uma cela, para morrer aos poucos por determinação dos cidadãos contribuintes.

É assim que o ator Ícaro Rodrigues inicia o solo que leva aos palcos, em São Paulo, um conto de Plínio Marcos sobre a brutalidade do sistema prisional no Brasil.

O ator Ícaro Rodrigues na peça 'Inútil Canto e Inútil Pranto dos Anjos Caídos', com texto de Plínio Marcos
O ator Ícaro Rodrigues na peça 'Inútil Canto e Inútil Pranto dos Anjos Caídos', com texto de Plínio Marcos - Noelia Nájera/Divulgação

O texto é de 1977, o que choca pela atualidade das cenas narradas. Rodrigues, disposto sobre um palco pelado, com apenas alguns pedestais de microfones amontoados no chão atrás de si e auxiliado por um sincronizado jogo de holofotes, conta como pragas a doenças venéreas proliferadas naquele cubículo "roem as peles" dos 25 detentos.

"Essa limitação [cênica] faz com que a gente busque no corpo, na palavra, na voz, o movimento que queremos. É o teatro épico, fundamentalmente narrativo", diz Roberta Estrela D’Alva, diretora de "Inútil Pranto e Inútil Canto dos Anjos Caídos", em cartaz no Sesc Vila Mariana, que dá nome ao conto de Plínio Marcos.

Renomado dramaturgo e expoente do teatro marginal paulistano durante a ditadura militar, Marcos teve duas de suas peças, "A Navalha na Carne", de 1969, e "Dois Perdidos numa Noite Suja", de 1970, adaptados para as telonas pelo cineasta Braz Chediak.

"Inútil Canto e Inútil Pranto dos Anjos Caídos" não foi seu único escrito sobre o cárcere. "Barrela", sua primeira peça teatral, foi baseada no cotidiano de uma prisão em Santos, cidade onde nasceu.

"Malditos sejam os cidadãos e a sociedade por aprisionar homens em um lugar onde seria crime aprisionar até a besta fera", declara Plínio Marcos, na voz de Rodrigues, iluminado por uma luz que forma um desenho quadrado na parede atrás de si –dando a impressão de que o ator está encarcerado, falando pela janela da cela.

Ícaro Rodrigues é também idealizador da adaptação do conto ao palco, vontade que surgiu quando trabalhava como educador no complexo de Guaianazes da Fundação Casa. "[O conto] era muito próximo ao universo que eu via ali com os jovens, essa sensação do ambiente, os sons de grades, os cheiros, era tudo muito presente no meu dia-a-dia", diz.

Mas o que mais chamou a atenção do ator foi a musicalidade presente no texto de Plínio Marcos, que o levou a interpretá-lo, pela primeira vez, em uma batalha de slam. Na adaptação final, Rodrigues chega a narrar o drama dos 25 presos em rimas, com uma batida de fundo.

"O rap foi um movimento cultural muito importante para nós, artistas de origem periférica", diz. Junto à D’Alva, a diretora, o ator participou do coletivo teatral Núcleo Bartolomeu, que mistura dramaturgia e hip-hop para trabalhar o que chama de "ator MC".

Na véspera da estreia, Rodrigues conta que sonhou com alguns colegas. "Eu cresci em Diadema, muitos amigos foram detentos", diz. Na peça, o ator narra as violências sofridas pelos detentos como se tomasse as suas dores para si. À sua voz, soma-se áudios de pessoas que, de fato, viveram em alguma prisão brasileira.

Entre a descrição dos presos anônimos de Plínio Marcos, são citados aqueles que foram encarcerados por porte da maconha ou Pinho Sol, referência ao caso do jovem Rafael Braga, preso em uma manifestação de 2016 por carregar desinfetante na mochila e que se tornou um símbolo das falhas judiciárias no país.

"Para anjos caídos existe aflição. A maldade está no cidadão contribuinte que quer garantir privilégios [...] os anjos caídos se rebelam em seu desespero, roubando e matando", declara o narrador.

Os 25 presos espremidos em um cubículo tem poucos momentos de respiro, que se resumem ao dia de visitas e dez minutos de caminhada sob o sol por dia. Mas a trama escala quando, após uma semana de chuva infindável, os detentos espancam um dos carcereiros e ateiam fogo nos "imundos colchões" onde dormiam.

Rodrigues então começa a colocar de pé os pedestais que, até aquele momento, pareciam ossos amontoados. Os 25 microfones parecem, então, aguardar por interlocutores ausentes.

A trilha do momento eufórico é uma composição do Conde Favela, grupo periférico de jazz. A iluminação somada ao gelo seco imita o fogo, enquanto Rodrigues comanda, de costas para o público —tal qual um maestro—, a orquestra da libertação

INÚTIL CANTO E INÚTIL PRANTO DOS ANJOS CAÍDOS

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