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Série 'A Outra Garota Negra' faz do racismo estrutural um circo

Produção que adapta o livro da escritora americana Zakiya Dalila Harris não entrega o que promete a seu público-alvo

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São Paulo

Não é raro se deparar com mulheres negras pioneiras. As primeiras a entrar para a faculdade, a se formar em um curso de elite ou a assumir um cargo de chefia estão ocupando espaços no século 21.

Não por acaso, o pioneirismo é acompanhado pela solidão. Ser uma das precursoras significa ser única, o que mobiliza o desejo por companhia, mas também o medo de sofrer uma rasteira de uma possível concorrente semelhante.

Sinclair Daniel como Nella em 'A Outra Garota Negra'
Sinclair Daniel como Nella em 'A Outra Garota Negra' - Divulgação

Esta é a premissa de "A Outra Garota Negra", série em dez episódios inspirada no livro homônimo da escritora norte-americana Zakiya Dalila Harris e lançada em setembro pelo Star Plus.

A produção conta a história de Nella, interpretada pela atriz Sinclair Daniel. Ela é assistente editorial em uma renomada editora de livros e a única mulher negra da empresa —precedida apenas por Kendra Rae Philips, papel de Cassi Maddox, uma editora que desapareceu logo após publicar um bestseller.

Os primeiros episódios constroem Nella como uma personagem ao mesmo tempo comum e extraordinária. No início, ela aparece enfrentando os racismos sutis de seus colegas de trabalho, que reduzem suas habilidades profissionais a buscar cafezinhos e opinar, mas nem tanto assim, sobre livros relacionados a questões raciais.

Ela imagina como seria bom ter outra garota negra na editora, até que Hazel, vivida por Ashleigh Murray, é contratada. Linda, confiante e extrovertida, ela poderia ser a aliada perfeita. No entanto, quando situações desconfortáveis e estranhas começam a acontecer, Nella passa a desconfiar da colega.

O primeiro caso acontece quando a protagonista recebe a atribuição de avaliar o manuscrito de Colin, papel de Brian Baumgartner, um escritor branco renomado que está prestes a publicar um livro no qual reforça estereótipos racistas por meio de sua personagem negra.

Ao alertar a chefe de que a história pode ser mal recebida pelo público afrodescendente, ela é instruída a esconder suas anotações e apenas elogiar a obra —que já está com o lançamento marcado antes mesmo de ser revisada.

A narrativa se une a livros atuais como "Mundo Real", de Brandon Taylor, e "Luxúria", de Raven Leilani, sobre a solidão de jovens negros que passam a acessar ambientes privilegiados e brancos, e a thrillers psicológicos como "Corra!", "Nós" e "Não! Não Olhe!", de Jordan Peele, que brincam com o racismo que é capaz de aterrorizar pessoas negras a partir de suas mentes.

Embora traga à indústria do entretenimento a vivência negra e a coloque como protagonista de uma história, a série promete mais do que é capaz de entregar. Os primeiros episódios constroem personagens complexos e instiga o telespectador a conhecê-los. É reconfortante ver situações e angústias do dia a dia na tela e pensar em como elas serão encaradas.

Um exemplo é o namoro interracial de Nella com Owen, interpretado por Hunter Parrish. Ele parece não entender os sentimentos da jovem em diversos momentos, principalmente quando sua negritude influencia uma situação. O conflito, no entanto, não é aprofundado.

Em seu decorrer, a série empilha uma sequência de acontecimentos confusos, que fazem da vivência negra um circo. Melhor seria se o terror psicológico fosse construído a partir da própria realidade do racismo, que, ao ser bem trabalhada, é aterrorizante o suficiente. No entanto, é um produto de cabelo que é inserido na trama como instrumento de medo.

Na ânsia por entender o que está acontecendo e por quê, o público vê a narrativa perder seu propósito inicial, que é apresentar a solidão e a concorrência impostas a mulheres negras, a força da união e a falta de diversidade nas empresas, muitas vezes disfarçada pela contratação de um único indivíduo.

Esses temas passam a ser retratados em meio a cenas que se atropelam após os primeiros episódios, mudando o contexto da história de uma hora para a outra. O cosmético de cabelo, simbólico por envolver a sensibilidade e força atribuídos aos cabelos crespos e cacheados, reforça o deboche da história com o público negro.

Se na vida real o cabelo de pessoas negras é símbolo de valorização, resistência e construção da autoestima, na série ele aparece como um tópico sensível.

Até aí, Rapunzel também perdeu a força pelas madeixas, mas estava claro quem era a bruxa má. Já em "A Outra Garota Negra" o racismo é tão forte que atinge a mente de mulheres negras, que acabam como algozes das próprias tranças. Caso tenha uma nova temporada, a série precisa recuperar o fio da narrativa e se aprofundar mais nas relações e menos nos mistérios.

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