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Como Socorro Acioli faz livros brotarem de histórias fantásticas da vida no sertão

Relatos contados pela escritora, convidada da Flip, fizeram até García Márquez desconfiar

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Adriana Abujamra
São Paulo

A avó sertaneja que criou a escritora cearense Socorro Acioli protegia a família com espingarda e fé. Chegou a matar um invasor da propriedade em que viviam e só dormia depois de ter um particular com cada santo do oratório da casa.

A mãe da autora sofria de esquizofrenia. "Engravidou, tentou me abortar e não conseguiu", conta Acioli. "Um dia me levou até a casa da minha avó, me deixou em cima da cama e foi-se embora."

mulher de cabelo castanho cacheado olha para a janela à direita vestindo blusa laranja
A escritora Socorro Acioli, que estará na Flip 2023 - Divulgação

Semi-analfabeta, a avó preencheu a vida da neta com histórias. Contava de milagres, de aparições e do dia em que quis fugir com Lampião e foi impedida pelo pai. Eram relatos tão fantásticos que até Gabriel García Marquez desconfiou.

Acioli conheceu o colombiano em 2006, numa oficina para escritores em Cuba. Ele ficou incrédulo quando ela contou que achara a inspiração para seu primeiro romance numa notícia sobre uma estátua de santo Antônio deixada inacabada em Caridade, no Ceará.

O corpo fora abandonado no alto de um morro, e a cabeça sobrou lá embaixo. Não havia muque que conseguisse unir as partes, e a cabeça de olhos esbugalhados ficou para sempre no chão. Oca e gigantesca, passou a ser usada como motel pelos casais e casa por um morador de rua. "Lá de onde venho tem um monte de história assim", afirmou a cearense a García Márquez.

O livro em questão, "A Cabeça do Santo", foi publicado em 2014, traduzido para quatro línguas e teve seus direitos vendidos para o cinema.

Aos 48 anos, com mais de 20 obras publicadas e um prêmio Jabuti no currículo, a autora acaba de lançar seu segundo romance, "Oração para Desaparecer", e estará na programação principal da Flip, em Paraty.

O livro gira em torno de uma mulher desmemoriada que é desenterrada viva em Portugal, nua, careca e com um colar de contas no pescoço. Sabe que é brasileira porque fala português e entende que algo grave ocorreu, por causa das marcas no seu corpo.

O enredo também brotou de uma história real, a de uma igreja soterrada por quase meio século. Uma crônica de Carlos Drummond de Andrade serviu de fonte para a protagonista, e o título veio da tradição de um povo indígena, os Tremembés.

A autora usa a literatura fantástica para examinar a identidade brasileira e rever as violências praticadas contra os indígenas. O romance chegou às livrarias no começo de novembro e já vai para a segunda tiragem. "No Brasil o livro vira popular e começa a ser depreciado, mas não me importo. Quero escrever um texto acessível."

"Existe aqui uma divisão entre a literatura dita sofisticada e os livros chamados de entretenimento", afirma a autora. "Há muito preconceito com histórias que tenham começo, meio e fim, como se isso nos impedisse de inovar."

O curioso é que seu primeiro romance tem vendido muito mais nos últimos anos do que quando foi lançado. Ela atribui isso a clubes de leitura, à divulgação na internet e ao sucesso do baiano Itamar Vieira Junior, outro convidado da Flip 2023, com "Torto Arado".

"Itamar alavancou o interesse por autores do Nordeste e puxou muito meu livro, por uma afinidade temática", diz Acioli, doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense, onde coordena cursos de especialização em escrita e criação literária.

Um ex- aluno seu, o conterrâneo Stênio Gardel, é autor do romance "A Palavra que Resta", que recebeu na semana passada um dos prêmios mais prestigiosos dos Estados Unidos, o National Book Award, na categoria dedicada a obras traduzidas para o inglês.

Na parede do quarto de Acioli, onde ela escreve, há a fotografia de um hotel abandonado que será cenário de seu próximo romance. O protagonista é um adolescente que junta dinheiro para comprar uma mãe e é engambelado.

O hotel ficava na rua em que ela viveu na infância, e o garoto é inspirado em André, seu meio-irmão. O pai deles se matou quando Acioli tinha três anos de idade. "Vestiu terno e disse para Andrezinho não entrar no quarto", conta a escritora. "Ninguém sabe o que ele viu."

A mãe está num retrato emoldurado na sala. O pai sorri numa fotografia na gaveta, onde aguarda ser restaurada. "Sou a parte viva dos dois. Escapei desse nó familiar com a ajuda de uma tia, que me mostrou possibilidades de existir para além daquele bolo."

No livro que está escrevendo, André descobrirá uma sociedade secreta no subsolo do hotel, empenhada em construir uma casa de máquinas que permitirá ao prédio em ruínas se transformar num navio e zarpar. "É uma loucura grande, não sei ainda onde isso vai dar".

Oração para Desaparecer

  • Quando Mesa da autora na Flip na quinta (23), às 12h
  • Preço R$ 69,90 (208 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Socorro Acioli
  • Editora Companhia das Letras
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