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Sérgio Alpendre

'Crônica de uma Relação Passageira' faz do ato de curtir tristeza um triunfo

Filme de Emmanuel Mouret é melodrama refinado que trata com leveza relacionamento fugaz de pessoas de perfis opostos

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Sérgio Alpendre

É crítico e professor de cinema

São Paulo

Perto da sofisticação narrativa de "Amores Infiéis" —o belíssimo longa anterior de Emmanuel Mouret, de 2020—, este "Crônica de uma Relação Passageira", do ano passado, parece simples, até simplório em alguns momentos.

Desde o início, quando um homem e uma mulher se encontram num bar depois de se conhecerem numa festa dias antes, percebemos estar diante de uma comédia comum sobre pessoas comuns, ainda que parisienses pareçam sempre pessoas cheias de posses, portanto nada comuns.

Sandrine Kiberlain e Vincent Macaigne em cena do filme 'Crônica de uma Relação Passageira', de Emmanuel Mouret
Os atores Sandrine Kiberlain e Vincent Macaigne em cena do filme 'Crônica de uma Relação Passageira', de Emmanuel Mouret - Divulgação

Ele é Simon, homem casado vivido por Vincent Macaigne, espécie de alter ego do diretor em seus últimos filmes. Ela é Charlotte, mulher moderna interpretada por Sandrine Kiberlain. Juntos iniciam um relacionamento cheio de percalços e fadado ao fracasso.

Charlotte é mãe solteira, não tem cortinas em seu apartamento e não está nem aí se os vizinhos a observam. Simon é meio tímido, de falas indecisas como as do próprio Mouret, quando este atuava em seus próprios filmes. Sempre titubeante, encanta por sua vulnerabilidade.

São opostos que têm tudo para atrair um ao outro, segundo a cartilha da comédia romântica que o cineasta domina como poucos. Em forma de diário, vemos os encontros, mais ou menos espaçados, entre essas duas figuras.

Não devemos, contudo, subestimar a capacidade do cineasta de nos dizer coisas profundas de um modo sutil e inteligente. Há sempre uma atenção a detalhes e um cuidado formal que enriquecem suas narrativas. Além disso, sempre há algo da nobreza de um melodrama em seus filmes. Melodrama, esse gênero incompreendido que Mouret também domina.

Seu cinema costuma rondar as relações amorosas, os amores fugazes que se tornam mais duradouros, muitas vezes contra a vontade dos amantes, ou abreviados por algum obstáculo, geralmente uma outra paixão que atravessa a paixão antiga e a estremece. É basicamente um triunfo do coração e do desejo sobre a razão que os procura cercear.

Muitas vezes, um homem ou uma mulher amam duas pessoas ao mesmo tempo, porque amam coisas diferentes nessas pessoas. É o que acontece com Charlotte. A confusão não se resolve facilmente e algum sofrimento é inevitável até que se siga o que o coração mandar.

Por isso se multiplicam entre críticos as comparações com Éric Rohmer, Woody Allen e outros diretores das cirandas amorosas. É possível perceber muitas similaridades entre Mouret e vários cineastas, que servem de fato como referências.

O diretor cita explicitamente "Cenas de um Casamento", de Ingmar Bergman, numa cena em que os amantes se encontram por acaso no cinema.

Uma coisa é única em Mouret, a habilidade no trânsito entre a comédia romântica e o melodrama. Muitas vezes os dois registros acontecem ao mesmo tempo e o espectador é levado a pensar que está em um, mas na verdade está em outro.

Seu melhor filme, "Um Novo Dueto", de dez anos atrás, está muito mais para o melodrama, embora fiquemos um tempo nos perguntando se algumas de suas cenas não têm um efeito humorístico.

Em "Crônica de uma Relação Passageira" acontece praticamente o contrário. Se é uma comédia romântica mais próxima do tradicional é porque está dominado por uma leveza singular, como na cena em que duas crianças começam a rir quando testemunham o beijo no parque. Um tipo de leveza alcançada com muito trabalho.

Numa das melhores sequências do filme, Charlotte e Simon resolvem fazer sexo a três com uma desconhecida. Charlotte quis que Simon realizasse sua principal fantasia, transar com duas mulheres. Mas sua timidez transforma a fantasia numa provação. E Macaigne é normalmente ótimo em transmitir a confusão sentimental de seu personagem.

Estamos num filme de Mouret, o que significa que em algum momento a tristeza, e mais do que isso, a curtição dessa tristeza, vai aparecer triunfante. É nesse momento que a direção faz a diferença, com enquadramentos refinados, precisão no ritmo e muita sensibilidade no uso da trilha sonora.

Pode até parecer cinema francês de gosto médio, mas sob sua aparente simplicidade jaz toda uma gama de emoções humanas. Talvez por isso o cinema de Mouret emocione tanto.

Crônica de uma Relação Passageira

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