Marco Nanini encena toda a sua angústia com Gerald Thomas na peça 'Traidor'

Trabalho inédito estreia no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, com temas relacionados a guerra, crise climática e redes sociais

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O ator Marco Nanini em ensaio da peça 'Traidor', de Gerald Thomas, no Galpão Gamboa, no Rio de Janeiro Eduardo Anizelli/Folhapress

Rio de Janeiro

Gerald Thomas vê o mundo em frangalhos. É tudo tão confuso. O mundo está em guerra, as bombas explodem em Gaza, as notícias de destruição chegam ao Rio de Janeiro, à ilha de Manhattan. As redes sociais bombardeiam imagens, no inverno faz calor, no verão faz frio. Nada faz sentido para o autor e diretor teatral. Tudo se resume à náusea, vertigem e linguagem.

Para encenar os tempos apocalípticos, Thomas se juntou a Marco Nanini em "Traidor", peça inédita que estreia para estudantes de teatro do Sesc Vila Mariana nesta semana, e, para o público geral, na semana que vem. "Tento desvendar, em todos os meus textos, o que acontece no mundo neste momento. Tento desvendar o que é essa loucura de viver na atualidade", afirma Thomas, entristecido com a guerra entre Israel e Hamas.

O ator Marco Nanini em ensaio da peça 'Traidor', de Gerald Thomas, no Galpão Gamboa, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

"Se me perguntassem onde fundar um Estado para os judeus hoje, eu daria como sugestão um outro lugar", diz ele, que teve em sua família 17 pessoas mortas no Holocausto. "Sei que existem motivos para ser lá, mas não sei por que esses estrangeiros vão para aquela região. Aquele lugar é só problema, é o fim da picada. Vão para o deserto do Arizona, lá seria um bom lugar para fundar o Estado de Israel."

Sentado à mesma mesa, Nanini está lacônico. Ele acompanha a revolta do amigo em silêncio. Depois da peça "Um Circo de Rins e Fígados", encenada em 2005, o teatro une de novo duas personalidades díspares. "Tinha um pouco de medo de trabalhar com ele, todo mundo diz que ele tem fama de rebelde", afirma Nanini. Pouco a pouco, o homem tímido desaparece, dando lugar ao ator que inicia o ensaio.

Um ready-made formado por uma pilha de baldes vermelhos, ao modo do artista francês Marcel Duchamp, se esparrama pelo chão. Nesse ato trágico, a peça se inicia, delimitando a falta de sentido na existência humana. "Traidor" não quer mesmo contar história alguma. Não tem princípio, meio e fim. Não há nada para entender no texto.

Thomas sabe que a narrativa está morta. O mundo contemporâneo, diz, não comporta o teatro de enredo e personagem. Em sua antidramaturgia, o diretor escreve em fragmentos, elegendo Nanini para dar vida ao fluxo de consciência de um homem beirando à loucura, que, em tempos bélicos, teme a chegada de um exército inimigo —mas o exército nunca chega, o que configura um contexto absurdo.

Saturado das informações do TikTok, do Instagram e do WhatsApp, o homem também enxerga, no contexto da cultura do cancelamento, os usuários das redes sociais como tropas do mal. Nanini divide a cena com outros atores, que são prolongamentos de sua personalidade em plena crise.

"Agora é diferente! Está pior que nunca! O Instagram é pior que as fogueiras da Inquisição! O Facebook é pior que o Terceiro Reich", diz um deles, ao pé do ouvido de Nanini.

Por diversas vezes, o artista repete "a gente se emociona, sim", frase presente na peça anterior da dupla. Parece uma resposta ao processo de desumanização causado pela tecnologia e por tanta desgraça no mundo, que já não choca quem assiste aos telejornais.

A peça mostra que a pergunta "quem sou eu?" nunca foi tão difícil de ser respondida. Pois esse "eu", no mundo contemporâneo, está estilhaçado, a exemplo das várias vozes que compõem o homem em crise. Na encenação do agora, nada mais pertinente que a peça fale também da pandemia, sobre as mudanças climáticas e, claro, sobre a morte. O absurdo, da espera vã do personagem, já não se distancia da realidade.

Se são vários os temas que preenchem a falta de sentido, as referências autorais formam um emaranhado no texto. De início, Samuel Beckett surge como um vulto não nomeado. Discípulo do dramaturgo irlandês, Thomas também tenta encenar o nada de várias formas. Por extensão, o niilismo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche está em toda a parte, tendo seu nome lembrado em diversas ocasiões.

Thomas também se apropria da história de "A Tempestade", de William Shakespeare, para criar um pesadelo, numa cena em que Nanini vislumbra o afogamento da própria mãe.

Mesmo com a onipresença do humor irônico e nonsense, a tristeza do texto nunca é apagada. Segundo Nanini, o personagem transparece uma solidão absoluta, ainda que não esteja de fato sozinho no palco. Graças à solidão, o homem, afirma o ator, tem um universo amplo de temas e de imaginação.

"A pior forma de solidão é alguém no meio da Grand Central Station lotada", diz Thomas, mencionando o maior terminal ferroviário de Nova York.

Não saber a quem o autor se refere com a palavra "traidor", que nomeia a peça, já incita a plateia a compartilhar da mesma angústia do homem solitário. Thomas diz que o termo pode falar da situação da política mundial, de uma história de amor ou indicar que o personagem estaria traindo a ele mesmo. O diretor mostra que não existe arte sem incômodo.

Sua inquietação desvela uma dor de existir. Não à toa, seu processo criativo é construído com o artista dia a dia, num pêndulo que se inicia numa crise interior e finda na encenação do caos. Privilegiando o pensamento, o teatro de Thomas tem a atitude brechtiana de raptar o zeitgeist —então, as guerras, o clima e as redes entram na cena.

Para tanto, o diretor põe em funcionamento pontos da estética da ópera seca, da companhia que fundou ainda nos anos 1980. Iluminação, trilha sonora e cenografia trabalham em consonância. Todos os elementos não estão fora do texto.

Nessa intervenção na realidade, Nanini afirma ter o desafio de ligar todos os temas da peça ao drama daquele homem. Com seis décadas de carreira, o ator já fez de tudo no teatro, de "Mão na Luva", de Vianinha, dirigido por Aderbal Freire-Filho em 1984, até o sucesso de "O Mistério de Irma Vap", encenado com Ney Latorraca, dois anos depois.

Agora com 75 anos, ele relata sentir as dificuldades do envelhecimento no exercício da profissão. "É importante que eu apareça velho", afirma. "Estou envelhecendo, essa é a realidade. Do contrário, as pessoas vão achar que estou jovem e terão um susto ao me verem."

Contudo, o artista ainda se entusiasma ao se dividir entre o teatro, o cinema e a televisão, onde encarnou o personagem Lineu, em "A Grande Família", da Globo, durante 14 anos.

"Foi bom, porque foi um fenômeno, mas durou muito tempo. Estava quase me transformando em bisavô para continuar a produção", diz ele, que agora interpreta o médium João de Deus no Globoplay.

Thomas é o oposto. Ele prefere passar longe do audiovisual. "Confesso ter um certo preconceito. Tenho pavor de naturalismo, essa coisa de chegar na câmera e dizer assim ‘oi, bom dia, você quer um café?’".

Thomas e Nanini pensam o momento do teatro brasileiro. Mas o diretor afirma que as artes cênicas não devem inquietar o cidadão médio. "Teatro é uma arte marginal e é bom que seja assim. Ninguém tem de se preocupar com o que eu faço. Tem de se preocupar com salário mínimo, com a guerra e com o cocô do saneamento básico."

Nanini vê algumas dificuldades no cenário atual. Embora não tenha muito contato com as novas gerações, ele lembra que é preciso estudar muito para ser um bom ator.

"A televisão é uma feira de atores. Atualmente, tem gente que só está lá por vaidade. Se você não se aprofundar e não tiver amor pela profissão, fica difícil", ele afirma.

Nanini vê também um desaparecimento da crítica na imprensa. O ator diz que os textos nos dias atuais têm uma qualidade inferior, porque não há estímulo para que os profissionais estudem a arte teatral.

As questões suscitadas por "Traidor", no entanto, vão além do teatro. Diante de tanta melancolia, o personagem de Nanini enumera uma dezena de drogas, as mesmas usadas em larga escala pela população mundial, que poderiam curar a dor de existir. Thomas conhece bem o tema.

Além de estrear a peça, ele está lançando "Blow-pó", um livro em que conta, entre relato pessoal e ficção, sua experiência com a cocaína. Nem as drogas puderam curar a sua permanente inquietação. No livro, ele não faz apologias.

"A cocaína me deu montanhas, alguns canudos e um livro", diz. "Em termos artísticos não ganhei nada, eu ganhei muita sacanagem e muito sexo. Perdi muitos quilos, mas ganhei muito pau duro."

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