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Peça resgata Plínio Marcos com versão sobre uberização do trabalho

'Dois Perdidos Numa Noite Suja - Delivery' adapta original e carregadores de caminhão viram entregadores de aplicativo

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Maria Eugênia de Menezes

Dois Perdidos numa Noite Suja - Delivery

Em meio à censura imposta pela ditadura militar, Plínio Marcos, morto desde 1999, despontou como autor maldito. Se Nelson Rodrigues trazia à cena as depravações sexuais e angústias do suburbano carioca, Plínio dedicou-se —durante boa parte de sua produção— a olhar os proscritos. Prostitutas, cafetões, homossexuais, gigolôs e ladrões: tudo aquilo que fugia à norma social entrava na manufatura do dramaturgo santista.

Marco de sua estreia como profissional, "Dois Perdidos Numa Noite Suja" olhava os conflitos de dois homens encerrados em um quarto de pensão. Carregadores em um mercado, vivendo de biscates e serviços esporádicos, eles dependem apenas da própria força de trabalho para sobreviver. Estão unidos pela pobreza, pelo desamparo, pela precariedade do emprego. O pertencimento a um mesmo extrato da sociedade, contudo, não une os expropriados. Antes, separa-os como concorrentes.

Cena da peça 'Dois Perdidos numa Noite Suja – Delivery', com direção de José Fernando Peixoto de Azevedo
Cena da peça 'Dois Perdidos numa Noite Suja – Delivery', com direção de José Fernando Peixoto de Azevedo - Nycholas Alves/Divulgação

Na versão dirigida por José Fernando Peixoto de Azevedo, interessantes camadas de conflito entram na relação dos amigos Paco e Tonho. A primeira dela vem evidenciada já no subtítulo. Ao chamar a montagem atual de "Dois Perdidos Numa Noite Suja – Delivery," o encenador desdobra o massacre do novo capitalismo no Brasil e traz a intrincada e cruel lógica da uberização do trabalho para compor o emaranhado proposto por Plínio Marcos.

Verdade seja dita, o enredo da peça instiga releituras e transposições. Foi o caso do filme de José Joffily (2002), quando os protagonistas (vividos por Roberto Bontempo e Débora Falabella) eram retratados como imigrantes ilegais, em busca de uma oportunidade nos Estados Unidos. O curioso é como Azevedo consegue trazer um olhar fresco sobre o tema sem recorrer a nenhuma adaptação ou alteração significativa do texto.

Caracteriza as personagens como entregadores de delivery apenas pelo figurino e detalhes da ambientação. Faz umas poucas aparas em termos que estavam muito datados —como a habilidade de Tonho com a datilografia, por exemplo— e o drama de 1966 se sustenta facilmente. O fenômeno da prestação de serviços por aplicativos é recentíssimo historicamente falando; as estratégias para minar o poder de articulação do lúmpen, nem tanto.

Com experiência acumulada nas companhias Teatro de Narradores e Os Crespos, José Fernando Peixoto de Azevedo é nome de destaque na nova cena preta que desponta no país e vem de uma bem-sucedida adaptação de outra obra de Plínio Marcos. Em "Navalha na Carne Negra" (2018), o diretor valia-se de alguns dos expedientes a que recorre novamente em "Dois Perdidos".

Um recurso retomado é a presença de um intérprete negro. Neste caso, porém, o conflito racial fricciona ainda mais a disputa entre Tonho e Paco, representado por um ator branco. A relação de classe se complexifica. Como se a cor acrescentasse uma dose extra de exclusão entre os excluídos. O uso do vídeo em cena é outra opção recorrente de Azevedo. As peles e rostos do elenco surgem em evidência por uma uma câmera que ora reforça a claustrofobia, ora abre janelas para subtextos.

Não deixa de ser arriscado o jogo de plasmar em cenas filmadas aquilo que o escritor preferiu deixar apenas sugestionado. Esse excesso de camadas —às quais se soma uma trilha sonora ao vivo incessante— ocasionalmente solapa a experiência do espectador. Mas a força das interpretações de Lucas Rosário e Michel Pereira mantém o construto de pé e bem firme.

Com um quê da psicopatia das personagens do cineasta austríaco Michael Haneke, Pereira compõe um Paco ainda mais virulento e odioso. Mesmo no Brasil da conciliação a qualquer preço, a fatura um dia chega. Na disputa de dois homens por um par de sapatos, nossa desumanização e falência como país afloram.

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