Descrição de chapéu
Livros Prêmio Nobel

'Brancura', de Jon Fosse, é como atravessar a saga de Dante em um tuíte

Pequena novela do Nobel de Literatura faz leitores sentirem ter corrido uma maratona em narrativa nada entediante

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ligia Gonçalves Diniz

Professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais

Brancura

  • Preço R$ 59,90 (64 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Jon Fosse
  • Editora Fósforo
  • Tradução Leonardo Pinto Silva

Como é possível terminar uma narrativa de 60 páginas com sentimento de exaustão? Não, "Brancura" não derruba pelo tédio. Antes o contrário: terminamos a pequena novela de Jon Fosse como quem houvesse corrido uma maratona e encontrado na chegada apenas a obviedade do fim.

O escritor norueguês Jon Fosse, vencedor do Nobel de Literatura
O escritor norueguês Jon Fosse, vencedor do Nobel de Literatura - AFP

O efeito não é causado por uma prosa particularmente enigmática, ainda que ela não entregue uma interpretação unívoca. Apesar da estranheza do ritmo afoito, as imagens da narrativa remetem a ideias bem familiares, mesmo clichês, e cada leitor se sentirá confortável em atribuir a elas um discurso a respeito de Deus, do além-morte ou dos eventos ou reticências que nos separam deles.

O enredo é simples: em um fim de tarde de outono, enfadado, o protagonista dirige a esmo até entrar numa densa floresta e atolar seu carro. Ele explora a pé os arredores enquanto anoitece e começa a nevar.

Com frio e uma espécie de "medo sem angústia", observa então se aproximar uma "brancura reluzente", que o aquece e afirma que sempre esteve e está ali. O leitor pensa, naturalmente, em uma emanação divina. Talvez seja.

O livro do Nobel de Literatura se constrói tanto em torno da ideia de encontrar Deus —ou o que for essa presença paradoxalmente transcendente— quanto do esforço de transpor esse encontro à linguagem escrita.

Fosse combina as duas coisas no monólogo interno de um narrador hesitante ao extremo —bem trazido ao português por Leonardo Pinto Silva—, que procura sem parar se convencer de que está experimentando adequadamente o que vive. Ele se pergunta se viu ou não a criatura branca. "Sim, claro que vi. Mas não poderia ter visto, porque tal criatura não existe."

O protagonista de Fosse começa seu relato no passado e vai transitando ao presente. É um recurso sutil, mas muito eficiente, de desestabilização do leitor. No passado, somos testemunhas do que lhe ocorreu e de como registrou as experiências; no presente, somos cúmplices de sua estupefação. Quando o então e o agora colapsam, os sentidos convencionais do mundo dão lugar a outras possibilidades, por mais frágeis que sejam seus índices de realidade.

Desde o paradoxo que Adorno descreveu nos anos 1950 ao afirmar que "não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração" —já que o século 20 destruiu a confiança na coerência da experiência humana—, a literatura explorou com tenacidade as contradições inerentes ao ato de se contar uma história com começo, meio e fim.

Abundam autores intrusos, experimentos com modos de contar impossivelmente íntimos e aporias narrativas —lembre-se do sujeito cortazariano que desconstrói a trama ao narrar a própria morte no conto "As Babas do Diabo".

O que Fosse faz, no entanto, é de outra natureza: a exploração da forma parece interessar a ele mais como meio possível —para um escritor ocidental— de imaginar e, portanto, viver a transcendência espiritual. Ele não explora as limitações da linguagem, mas suas possibilidades, e elas não se esgotam na produção de sentido.

As imagens não querem dizer algo, elas simplesmente estão lá. Apenas são, como se diria do Deus judaico-cristão. "E, se agora tenho de me manter longe de alguma coisa, é de metáforas", diz ele a certo instante.

Fosse renova a perplexidade do relato criando um narrador que duvida do sentido da própria experiência, mas não da capacidade de contá-la. Isso pode resultar por vezes em um texto que se leva a sério demais, resvalando para certa solenidade excessiva, o que contribui, talvez não intencionalmente, para a sensação de fadiga na leitura de um livro tão breve.

Nos últimos anos, aliás, o leitor (e o bolso dele) vem sendo bastante irritado pela moda de se publicarem volumes mínimos, com narrativas que ganham o rótulo de romance apenas para justificar o lançamento e o preço elevado.

No caso de "Brancura", porém, chegamos à última página com o alívio de quem enfrentou uma saga inteira —algo como a "Comédia" de Dante em um tuíte—, e a aflição de quem não pode saber se há algo além.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.