Descrição de chapéu Obituário Carlos Lyra (1933 - 2023)

Morre Carlos Lyra, compositor histórico da bossa nova, aos 90 anos

A morte do músico, que estava internado desde quinta no Rio de Janeiro por causa de uma febre, foi confirmada pela mulher

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Ruy Castro

Colunista da Folha e escritor. Seus livros mais recentes são “Os perigos do Imperador — Um Romance do Segundo Reinado” e “A Vida por Escrito — ciência e arte da biografia”, ambos pela Companhia das Letras."

Rio de Janeiro

Morreu Carlos Lyra, um dos precursores da bossa nova, aos 90 anos neste sábado. Ele havia sido internado na quinta-feira, dia 14, com febre e teve uma infecção, segundo sua mulher. Lyra será velado no Crematório Memorial do Carmo, em uma cerimônia restrita a familiares e amigos.

De 1958 a 1965, Carlos Lyra, em parceria com Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli e poucos mais, produziu maravilhas como "Primavera", "Minha Namorada", "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", "Coisa Mais Linda", "Canção que Morre no Ar", "Lobo Bobo", "Saudade Fez um Samba", "Se É Tarde me Perdoa", "Feio Não É Bonito", "Samba do Carioca", "Samba da Legalidade", "Aruanda", "Quem Quiser Encontrar o Amor", "Influência do Jazz", "Sabe Você", "Você e Eu", "Maria Ninguém", "Maria Moita" e muitas mais —gravadas por João Gilberto, Nara Leão, Sylvia Telles, Astrud Gilberto, Elis Regina, Billy Eckstine, Brigitte Bardot e incontáveis grupos instrumentais.

Dele, disse Tom Jobim que "Carlinhos é o maior melodista da bossa nova".

Em foto colorida, o compositor Carlos Lyra posa sorrindo para a câmera segurando um charuto
O compositor Carlos Lyra - Divulgação/Café Braga

Se Jobim falou, estava falado —embora, para o resto do mundo, o maior melodista da bossa nova fosse o próprio Jobim, com Lyra pagando um honroso placê. Seja como for, esse corpo de canções, produzido em tão pouco tempo, foi suficiente para sustentar Carlos Lyra pelos 50 anos seguintes —período em que, por vários motivos, sua produção não se comparou à dos tempos heroicos da bossa nova.

O que fez com que seu mais antigo parceiro —e cordial desafeto— Ronaldo Bôscoli o definisse, dizendo "Carlinhos Lyra é o contrário do vinho". "Quanto mais moço, melhor."

Bôscoli sabia o que dizia. Os dois juntos, e mais uma plêiade de garotos por volta dos 20 anos, compunham uma turma que, naquela época, passava as noites no apartamento da quase adolescente Nara Leão, na avenida Atlântica, em Copacabana, para tocar violão, trocar acordes, cantar suas composições, rir muito e filar o uísque do dono da casa, pai de Leão.

No futuro, diriam que a bossa nova nascera no apartamento de Leão. Mas Lyra, que vinha da pré-história do novo ritmo, sempre negou que tivesse sido assim. E acrescentava "nem a Nara nasceu no apartamento da Nara".

Embora tenha sido um dos criadores do movimento, Lyra foi quem mais procurou discutir o gênero —o que, às vezes, resvalou em posições contraditórias.

Exemplos? Cerca de 1961, por motivos ideológicos —pertencia ao Partido Comunista e atuava no CPC, o Centro Popular de Cultura—, se afastou de Jobim, Bôscoli e outros que considerava de "direita" e chegou a propor um novo nome, "sambalanço", para sua música.

O nome não pegou e ele voltou à denominação original. Em 1962, se insurgiu também contra o que considerava um excesso de influência do jazz na bossa nova, principalmente a praticada no Beco das Garrafas —donde o seu samba-manifesto, "Influência do Jazz".

Mas, já em 1963, gravou um disco, "The Sound of Ipanema", com o saxofonista americano Paul Winter e, em 1964, viajou pelos Estados Unidos com o principal jazzista da bossa nova, o também saxofonista Stan Getz. E foi também talvez o único a praticar explicitamente uma variedade rítmica dentro da bossa nova —sua obra é composta de boleros, como "Maria Ninguém", marchas-rancho, como "Marcha de Quarta-Feira de Cinzas", e sambas-canções, como "Minha Namorada".

Naturalmente que, vindo de quem vinha, era tudo "bossa nova".

Lyra pertenceu a uma extraordinária geração de compositores dos anos 1960 que incluiu, entre outros, os americanos Henry Mancini, Burt Bacharach, Neil Hefti, Cy Coleman e Stephen Sondheim, o italiano Nino Rota, o francês Michel Legrand, o mexicano Armando Manzanero e, claro, Antonio Carlos Jobim.

Todos fizeram música para cinema, televisão e teatro, sem prejuízo de canções avulsas, para seus cantores favoritos. Durante toda aquela década, eles foram, em escala internacional, a grande alternativa ao rock que já começava a impor sua ditadura ao mercado.

Uns mais, outros menos, eles chegaram ainda fortes aos anos 1970, mas, dez anos depois, todos tinham sido varridos das paradas de sucesso por um tipo de música que já não exigia melodia e harmonia sofisticadas.

Nesse interregno, Lyra se interessou por astrologia, aliás, pela "astrologia sideral", que propunha uma nova ordem para os signos do zodíaco, e escreveu um livro a respeito. E começou também uma longa carreira de shows baseados em seu repertório clássico.

As pessoas se perguntavam por que ele nunca mais compôs coisas como "Primavera" ou "Minha Namorada". Se a pergunta fosse dirigida a mim, eu respondia não é que ele não queira ou tenha perdido a inspiração. O mercado é que não quer saber mais dele ou de quem faça música bonita.

A prova de que a inspiração não abandonara Carlos Lyra está nas quase 20 grandes canções —com fabulosas letras de Aldir Blanc— que ele compôs para "Era no Tempo do Rei", um musical brasileiro que, por três meses de 2010, lotou o teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, e saiu de cartaz sem que nenhum cantor se interessasse por elas. Foi pena —muitas mereciam ter ganhado vida própria, fora do palco. Mas você nunca o ouviria se queixar de que, muito antes disso, ele já fora varrido pelo mercado.

É possível que, ao falar da morte de Lyra, outros veículos o deem como nascido em 1936, 1938 e até 1939 —confusão criada por ele próprio, numa tentativa de deter a passagem dos anos, e ratificada em seu livro "Eu & a Bossa", cheio de imprecisões, lançado há 15 anos. Mas a data certa é 11 de maio de 1933.

Data que, no passado, Lyra admitia com tranquilidade —quando não apenas a bossa ainda era nova, mas ele também, e, em 1963, a admirada Jacqueline, a mulher do presidente John Kennedy, passava o dia cantarolando "Maria Nobody" pelos corredores da Casa Branca.

Na verdade, a única dúvida seria quanto ao seu signo —touro, pela astrologia tradicional; áries, pelos novos cálculos que ele tinha feito pela "astrologia sideral".

Ele deixa a mulher e uma filha, Kay Lyra.

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