Descrição de chapéu indígenas

Mostra exibe fotos inéditas de indígenas tiradas em viagens de Ailton Krenak

Imagens estão no Tomie Ohtake e são do japonês Hiromi Nagakura, que foi 'sombra' de líder indígena na década de 1990

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'Tsirotsi Ashaninka', entre 1993 e 1997 Hiromi Nagakura/Divulgação

São Paulo

Em 1987, às vésperas da promulgação da Constituição, um homem indígena subiu ao púlpito do Congresso para discursar. Algo simbólico para um Brasil que acabava de se livrar de 21 anos de ditadura militar.

'Hõnpryre Rõnõre Jõnpiti, conhecido como Payaré; seu filho, Kôjitôti, conhecido como Claydivaldo Costa Valdenilson; e a sobrinha, Hàkajwyi Lima Hàràxàre', na década de 1990 - Hiromi Nagakura/Divulgação

"O povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver. Tem condições fundamentais para sua existência e para a manifestação da sua tradição", dizia um jovem e engomado Ailton Krenak, em defesa da inclusão da emenda à Carta Magna dedicada às populações indígenas.

A demarcação de terras, por exemplo, era um dos direitos resguardados pela cláusula. Vestindo um terno inteiramente branco, Krenak passava, enquanto discursava, pasta de jenipapo no rosto, até cobrir a cara por completo.

O que ele não esperava é que, pouco após seu ato histórico na Assembleia Nacional Constituinte, um homem atravessaria praticamente todo o globo para fazer um pedido inusitado. O estranho queria permissão para ficar na cola dele.

A solicitação foi feita por uma tradutora simultânea, visto que o fotojornalista japonês Hiromi Nagakura não fala português.

"Foi uma surpresa. Ele disse que queria viajar pela Amazônia mas não queria fazer isso como um cego, queria ir com alguém que tinha intimidade com as pessoas do lugar", lembra Krenak, em uma conversa no Instituto Tomie Ohtake, onde as fotografias da viagem de ambos, que durou quatro anos consecutivos, são expostas.

Toda vez que Krenak viajasse, Nagakura iria no mesmo voo. O fotógrafo, que antes disso tinha coberto o fim do apartheid na África do Sul, a ocupação soviética no Afeganistão e a guerra civil de El Salvador, pediu permissão para ter acesso a agenda do líder indígena. "Ele disse que queria ser minha sombra", lembra.

Ao lado de Krenak, Nagakura escuta com atenção a profissional que traduz as palavras do velho amigo, que vez ou outra põe o braço sobre seus ombros. "Eu achava que a Amazônia também estava em guerra. Não era uma guerra de armas, mas o Ailton estava no Congresso, as pessoas paravam estradas para continuar sobrevivendo", diz o fotógrafo. "Eu não deixei de cobrir a guerra. Aquelas pessoas continuavam lutando pela vida."

As fotografias, porém, não são de violência, mas de vida. Dentro das aldeias, Nagakura capturou as atividades cotidianas das sete comunidades por onde passou –Karikati, Xavante, Yawanawá, Yanomami, Kaxinawá, Gavião da Montanha e Ashaninka.

De crianças se banhando nos afluentes do rio Amazonas a homens pescando para a subsistência de suas famílias, de rituais com pintura corporal a danças em volta da fogueira, os cliques sensíveis parecem transmutar, em imagens, o discurso de Krenak no Congresso.

'Povo Yanomami, Aldeia Demini', na década de 1990 - Hiromi Nagakura/Divulgação

"Nós temos o rosto parecido", diz Nagakura, apontando para Krenak. "Mas, viajando com ele, percebi como deixamos as tradições de lado. O japonês vê parecido com o europeu", diz, lembrando as sociedades urbanas.

Apesar das diferenças culturais, o fotógrafo percebeu semelhanças entre o seu país e as comunidades que visitou na Amazônia. "O profundo respeito pela natureza [é comum]. Quando o Ailton entra na floresta, ele pede licença. No Japão, nós também reverenciamos as árvores."

Quando o trabalho fotográfico foi concluído, em 1997, as imagens foram exibidas no Japão —agora, no Tomie Ohtake, quando são exibidas pela primeira vez no Brasil, muitas pessoas, convidadas por Krenak, reconheceram a si próprias e aos seus parentes nas imagens.

Na época da viagem, as comunidades indígenas ainda não estavam sentindo, na prática, as conquistas políticas firmadas pela recém-nascida Constituição.

"Era uma realidade desconhecida pela maioria das pessoas que viviam na região por onde andamos. As pessoas não liam jornais e estavam no Brasil só fisicamente. No alto do rio Negro, o pessoal fala quatro línguas indígenas e talvez o espanhol", diz Krenak.

"Na década de 1990 as pessoas não sabiam o que era Constituição, e é capaz que até hoje muita gente não saiba. Andávamos por regiões onde tudo podia acontecer. Lugares que tinham acabado de ser invadidos, depredados, queimados."

O filósofo lembra que, em uma das visitas, na fronteira com o Peru, quando estavam chegando a uma aldeia de barco pelo rio, a dupla foi surpreendida por um helicóptero militar "gigantesco, parecendo aqueles da Guerra do Vietnã", sobrevoando suas cabeças. "Ele arrancou o teto das casas, os pés de banana. Era o Exército brasileiro ‘dando uma geral’ na fronteira."

"Essas paisagens subsistem à violência do agronegócio, do fogo e da burrice, porque tem gente dentro desses lugares produzindo floresta. As pessoas acham que floresta é uma coisa que acontece à nossa revelia, mas ela é fruto de uma cultura amorosa e gentil com a terra", diz Krenak.

Nagakura ainda se lembra do impacto que sentiu ao ver pessoas dividindo a comida, ainda que pouca, em alguns territórios por onde passou. "Apesar das adversidades, dividiam o que tinham comunitariamente na esperança de um futuro melhor."

A exibição inédita das fotografias no Brasil acontece no mesmo ano em que Krenak se tornou o primeiro indígena eleito como imortal na Academia Brasileira de Letras —uma reparação histórica com os povos indígenas, afirma— e 36 anos após seu ato no Congresso. "Vou levar para a Academia centenas de línguas nativas, porque lá só tem a portuguesa, e aqui não é Portugal."

Hiromi Nagakura Até a Amazônia com Ailton Krenak

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