Descrição de chapéu The New York Times

Netflix pagou US$ 55 milhões por série e diretor gastou com criptomoedas

Carl Erik Rinsch estava à frente de 'Conquest', superprodução que foi para o lixo por conta de seus hábitos exorbitantes

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John Carreyrou
The New York Times

Perto do auge do boom do streaming há cinco anos, meia dúzia de estúdios e plataformas de vídeo se alinharam para conquistar um cineasta pouco conhecido chamado Carl Erik Rinsch. Ele havia dirigido apenas um filme, "47 Ronins". Foi um fracasso comercial e de crítica, e as disputas de Rinsch com seus produtores haviam levantado suspeitas.

Mas a demanda por novo conteúdo era intensa. Em meio à febre de aquisições, o projeto que Rinsch estava apresentando —uma série de ficção científica sobre humanos artificiais— se tornou uma oportunidade quente.

Carl Erik Rinsch grava a série "Conquest", da Netflix, em São Paulo
Carl Erik Rinsch grava a série 'Conquest', da Netflix, em Montevidéu, no Uruguai - Santiago Cerini/The New York Times

Após um leilão competitivo, Rinsch e seus representantes chegaram a um acordo informal de oito dígitos com a Amazon. Mas antes que tivessem a chance de colocar a proposta no papel, a Netflix entrou em cena. Cindy Holland, vice-presidente de conteúdo original da empresa na época, ofereceu milhões de dólares a mais, além de algo que os estúdios raramente davam aos diretores —a palavra final.

A Netflix venceu o acordo —e logo se arrependeria. A empresa gastou mais de US$ 55 milhões na série de Rinsch, mas nunca recebeu um único episódio finalizado.

Pouco depois de assinar o contrato, o comportamento de Rinsch se tornou errático, segundo membros do elenco e da equipe da série, mensagens de texto e emails revisados pelo The New York Times e documentos judiciais em um caso de divórcio movido por sua mulher.

Ele afirmava ter descoberto o mecanismo de transmissão secreta da Covid-19 e ser capaz de prever raios. Ele apostou uma grande parte do dinheiro da Netflix no mercado de ações e em criptomoedas. E gastou milhões de dólares em uma frota de carros de luxo Rolls-Royces, móveis e roupas de grife.

Rinsch e a Netflix estão agora envolvidos num processo de acordo confidencial iniciado pelo diretor, que afirma que a empresa violou o contrato e deve a ele pelo menos US$ 14 milhões em danos. A Netflix negou dever qualquer coisa a Rinsch e chamou suas exigências de chantagem.

Rinsch se recusou a responder a uma lista detalhada de perguntas. Numa postagem recente no Instagram, ele disse que não cooperou com o Times porque esperava que o artigo fosse "impreciso".

Thomas Cherian, porta-voz da Netflix, disse que a empresa forneceu financiamento substancial e outro suporte à série de Rinsch, mas, "depois de muito tempo e esforço, ficou claro que o senhor Rinsch nunca iria concluir o projeto que concordou em fazer."

Segundo relatos, Rinsch, de 46 anos, é um cineasta talentoso. Depois de estudar na Universidade Brown, ele se juntou à produtora de Ridley Scott, fazendo comerciais e sendo aprendiz do aclamado diretor.

Houve rumores de que Rinsch dirigiria um prelúdio de "Alien", o clássico de ficção científica de 1979 de Scott, para sua estreia em longa-metragem. Em vez disso, os Universal Studios o contrataram para dirigir "47 Ronins", um filme de ação de grande orçamento estrelado por Keanu Reeves. Quando o filme foi lançado há dez anos, foi um fracasso. A Universal teve de bancar uma grande parte de seu orçamento de US$ 175 milhões.

Rinsch voltou a fazer comerciais. Em paralelo, ele e sua mulher, Gabriela Rosés Bentancor, começaram a trabalhar em uma série de TV de ficção científica sobre um gênio que inventa uma espécie semelhante aos humanos chamada Organic Intelligent. Rinsch chamou a série de "White Horse".

Inicialmente, Rinsch financiou a produção com seu próprio dinheiro e contratou principalmente europeus como atores e membros da equipe, o que reduziu os custos e evitou as regras sindicais de Hollywood.

Para manter o projeto em andamento, Rinsch conseguiu um investimento da empresa de produção 30West. Mas quando Rinsch perdeu um prazo, a 30West ameaçou tomar posse do projeto. Reeves veio em seu socorro investindo na série e se tornando produtor ao lado de Rosés.

Com o dinheiro que Reeves contribuiu, Rinsch terminou de editar seis episódios curtos, com duração de quatro a dez minutos, usados como apresentação às grandes empresas de streaming em uma primeira temporada de 13 episódios e 120 minutos.

A apresentação de Rinsch atraiu o interesse de Amazon, HBO, Hulu, Netflix, Apple e YouTube. A Amazon parecia prestes a vencer a licitação. Mas a Netflix roubou o projeto no último minuto, convencida de que tinha o potencial de se tornar uma franquia de ficção científica tão bem-sucedida quanto "Stranger Things".

A empresa concordou em pagar US$ 61,2 milhões em várias parcelas pelos direitos da série, que foi renomeada para "Conquest", de acordo com um contrato de novembro de 2018 revisado pelo Times. O acordo incluía duas cláusulas incomuns: a Netflix deu a Rinsch a decisão final sobre a série e garantiu a Rinsch e Rosés que eles permaneceriam "envolvidos para sempre" em todas as temporadas e spin-offs subsequentes.

Agora, Rinsch precisava entregar o prometido. As filmagens dos episódios restantes de "Conquest" começaram em São Paulo e depois em Montevidéu, no Uruguai, e em Budapeste, na Hungria.

Em São Paulo, o sindicato local da indústria cinematográfica enviou um representante ao set depois de receber uma reclamação de que Rinsch estava "maltratando a equipe" com "gritos", "palavrões" e "irritação excessiva", de acordo com uma carta enviada pelo sindicato ao parceiro de produção local da Netflix.

A Netflix foi informada do problema e abordou Rinsch, disse ao Times uma pessoa próxima ao set. Em Budapeste, Rinsch passou dias sem dormir e acusou sua mulher de conspirar para o matar, disseram duas pessoas que testemunharam o surto.

Rosés posteriormente afirmou num processo de divórcio que o comportamento de Rinsch começou a mudar mesmo antes das filmagens no exterior. Em várias ocasiões, ele jogou coisas nela e duas vezes fez buracos em uma parede.

Rinsch disse que recebeu um diagnóstico de autismo e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e que tomava medicamentos para ambos. Rosés e alguns membros da equipe estavam preocupados com o uso de Vyvanse por ele, uma anfetamina comumente prescrita para tratar o TDAH. Quando usado em excesso, o medicamento pode ter efeitos colaterais graves, incluindo mania, delírio e até psicose, de acordo com psiquiatras.

Em março de 2020, quando a pandemia de coronavírus estava chegando aos Estados Unidos, Rinsch pediu à Netflix que enviasse mais dinheiro a ele. Rinsch havia perdido vários marcos de produção e estava alternando entre duas versões do roteiro, uma mais curta que correspondia ao plano original de 13 episódios e outra duas vezes mais longa que exigiria a aprovação de uma segunda temporada.

Inicialmente, a Netflix resistiu à demanda de Rinsch, mas cedeu quando ele afirmou que toda a produção corria o risco de colapso sem um imediato aporte financeiro. A Netflix transferiu US$ 11 milhões para a empresa de produção de Rinsch, elevando seu investimento total para mais de US$ 55 milhões.

Rinsch transferiu US$ 10,5 milhões dos US$ 11 milhões para sua conta pessoal e fez apostas arriscadas no mercado de ações, de acordo com cópias de seus extratos bancários e de corretagem incluídos no processo de divórcio. Rinsch perdeu US$ 5,9 milhões em questão de semanas.

Em setembro de 2020, a Netflix reorganizou sua equipe de gerenciamento. Cindy Holland e outro executivo envolvido no contrato de Rinsch deixariam a empresa.

Em 18 de março de 2021, uma executiva de assuntos comerciais da Netflix, Rochelle Gerson, informou Rinsch por email que a Netflix havia decidido parar de financiar "Conquest". Ela disse a ele que ele estava livre para procurar financiamento em outro lugar, mas que qualquer adquirente teria de reembolsar a Netflix pelo que ela havia gasto.

Rinsch enviou e-mails raivosos para Gerson e um advogado da Netflix, acusando todos eles de violarem seu contrato.

O diretor começou a usar o que restava dos US$ 11 milhões que a Netflix havia transferido para sua empresa de produção para fazer apostas em criptomoedas. Ao contrário de seus investimentos no mercado de ações, esse deu certo —quando ele liquidou suas ações em dogecoin em maio de 2021, ele tinha um saldo de quase US$ 27 milhões.

Rinsch então embarcou numa farra de gastos. Ele comprou cinco Rolls-Royces, uma Ferrari e gastou milhões de dólares em móveis de luxo e roupas de grife. A conta chegou a US$ 8,7 milhões, de acordo com um contador forense contratado por Rosés.

A equipe jurídica dela suspeitava que as compras fossem destinadas a esconder os ganhos de criptomoedas de Rinsch.

Rinsch respondeu em um depoimento que os carros e móveis eram adereços para "Conquest" e que ele os havia pago com o dinheiro de produção da Netflix. Mas no processo com a Netflix, ele adotou uma posição diferente.

Em documentos confidenciais revisados pelo Times, ele argumentou que o dinheiro era contratualmente dele e que a Netflix devia a ele vários pagamentos adicionais totalizando mais de US$ 14 milhões.

A Netflix discorda. Num pedido apresentado em julho, a empresa afirmou que os pagamentos estavam condicionados ao cumprimento de vários marcos de produção por Rinsch, o que, segundo ela, ele nunca fez. O caso foi levado a um juiz neste mês. Uma decisão é esperada em breve.

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