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Colson Whitehead cria zumbis em livro, mas não consegue fabular futuro

Premiado autor americano parece ver o mundo desastroso de hoje como um passado que merece ser reconstruído

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André Araujo

Jornalista, professor e pesquisador

Setor Um

  • Preço R$ 69,90 (336 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Colson Whitehead
  • Editora HarperCollins
  • Tradução Érico Assis

Com mais de dez anos de atraso em relação à sua publicação original, o romance "Setor Um", do premiadíssimo autor americano Colson Whitehead, chega em momento propício para uma reflexão acerca dos traumas e impasses da sociedade pelo prisma do horror.

O escritor americano Colson Whitehead
O escritor americano Colson Whitehead - Chris Close/Divulgação

É, sem tirar nem pôr, uma história de zumbis. Temos já de saída a estrutura básica desse tipo de narrativa: uma praga mundial se espalha em velocidade vertiginosa, transformando os infectados em mortos-vivos devoradores de carne humana. Aqueles que ainda não foram transformados tentam sobreviver em uma terra devastada.

Mas, em vez do enfoque na ação, Whitehead constrói "Setor Um" de forma reflexiva, voltado à densidade psicológica dos personagens e ao efeito que a destruição do mundo pode causar subjetivamente. Para isso, o autor posiciona o início do livro alguns anos após os momentos mais agudos da epidemia.

Um governo provisório foi formado na cidade de Buffalo; certas instituições já estão voltando a funcionar (a burocracia estatal, a regulação dos mercados) e a humanidade enfrenta uma onda de otimismo, cristalizada sob a ideia de uma reconstrução: chegou a hora de retomar nosso território.

É nesse ambiente que somos apresentados ao protagonista do romance. Mark Spitz trabalha em uma divisão militarista cujo propósito é limpar o sul da ilha de Manhattan dos zumbis remanescentes. Ao longo de três dias, acompanhamos o trabalho de encontrar os "esgarrados", tipo de zumbi catatônico que não promove nenhum tipo de ameaça.

O Setor Um do título é essa primeira zona de retomada da civilização. Em meio ao trabalho repetitivo e tedioso, mesmo que de uma violência absurda, os personagens são tomados por devaneios, relembrando com nostalgia o que foi deixado para trás.

As técnicas literárias mais marcantes são a do fluxo de consciência e da reminiscência, fazendo com que o romance seja de uma lentidão quase excruciante. O estilo de Whitehead, com frases longas e sinuosas, também povoa a narrativa de uma densidade que nos obriga a confrontar a pasmaceira de um mundo em interregno.

Há, no coração do romance, um conflito entre o impulso em reconstruir o mundo e a dificuldade em fazer as pazes com o que foi perdido —o trauma e a memória são os verdadeiros temas de "Setor Um". Como reconstruir a sociedade quando o passado recente ainda nos assombra?

O passado projeta uma sombra nefasta sobre o romance como um todo. No mundo criado por Whitehead, a esperança que move os personagens é um retorno ao tempo anterior da invasão.

Mas se há um esforço literário para dar uma dimensão psicológica mais profunda aos efeitos da devastação, é notável como a dimensão especulativa do romance é insuficiente.

Susan Sontag, já em 1966, alertava para os perigos da imaginação conservadora presente em filmes populares de terror e ficção científica. A catástrofe, na visão dela, servia como um dispositivo de valorização absoluta da sociedade tal como ela se apresenta hoje em nosso cotidiano, uma naturalização do verdadeiro desastre.

Há breves acenos do autor ao fato de que talvez uma reconstrução seja problemática, como quando Spitz aponta: "Havia muita coisa no mundo que merecia seguir morta, mas seguia de pé". Falta ao romance, contudo, alguma figuração de alternativa a uma sociedade idealizada através da militarização.

Poderíamos ler seu gesto em chave irônica, como se os personagens fossem incapazes de conceber algo distinto, mas o próprio autor não fornece qualquer imagem que aponte para uma saída que não a reafirmação da sociedade ocidental —leia-se, Estados Unidos— como um passado virtuoso e horizonte de futuro.

A verdadeira fábula criada por Whitehead parece ser menos a de uma invasão zumbi e mais a de um mundo passado que não apenas merece como precisa ser reconstruído.

Falta ao autor desenvolver um dos pontos centrais do pensamento de Walter Benjamin, autor que aparece aqui como sua epígrafe: que a maior catástrofe de nossa época é não reconhecer nas dinâmicas do dia a dia o verdadeiro estado de exceção.

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