Descrição de chapéu

'O Estrangeiro Reloaded' faz muito pouco para atualizar o original

Adaptação do romance de Albert Camus, na forma de monólogo, tem cenário e figurino escuros demais para uma tragédia solar

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Vitor Rosasco

O Estrangeiro Reloaded

O monólogo combina com Meursault, protagonista da obra-prima de Albert Camus, mas a austeridade ambiente não rima com a riqueza sensorial do anti-herói de "O Estrangeiro Reloaded". Em certo sentido, o estrangeiro de Camus está alheio à vida. É possível dizer, porém, que ele está mais próximo dela do que qualquer um, com sua honestidade brutal.

Homem de macacão preto, com fundo escuro
Guilherme Leme Garcia na peça 'O Estrangeiro Reloaded', que adapta o romance de Albert Camus - Karime Xavier/Folhapress

No romance que inspira a adaptação, dirigida por Vera Holtz em cartaz no Teatro Vivo, a distância que separa Meursault dos demais é compensada pela proximidade com a natureza, com o Sol —a areia, o mar e os corpos em harmonia.

A peça parece alheia a tudo isso. Quando o ator Guilherme Leme diz, em cena, que as sensações físicas se sobrepõem aos sentimentos, temos que acreditar em sua palavra, sem entender muito bem o porquê. A encenação não colabora com a literatura, e a velocidade do teatro dificulta a reflexão. Quase não há sensorialidade.

O espectador precisaria ir ao original para compreender que Meursault, preso em um eterno presente, sem passado nem futuro, está alheio ao que denominamos sentimento, essa unidade abstrata que une impressões descontínuas no tempo. Um privilégio da leitura.

O cenário e o figurino, que compõem o ambiente, são escuros demais para uma tragédia solar. As contradições do Sol não aparecem, apenas o incômodo; o prazer deixado de lado, à mera narração. Por isso, não sentimos o peso do aprisionamento, depois do assassinato; o ambiente não muda, como se não tivesse havido privação.

Por outro lado, a forte iluminação amarelada, que aparece pouco, e a luz branca que vem de cima, na diagonal, como se estivéssemos observando alguém em uma cela, funcionam muito bem.

A peça melhora na segunda metade, com um humor que desafia o espectador com provocações sobre religião, convenções sociais e, no limite, sobre o sentido da vida. Contudo, é provável que o neon roxo da antessala do teatro e o ambiente de shopping neutralizem eventuais inquietações. Difícil imaginar alguém, ali, indo além da peça em si.

No fim, ao tirar o macacão e exibir uma regata preta, Leme interpreta com maestria diferentes vozes, mudando o tom, apenas. O figurino, os gestos e a fala convergem e comunicam algo: Meursault percebe, enfim, seu lugar nesta vida, neste mundo. Um estranho, condenado à morte —como todos os humanos, mais cedo ou mais tarde.

Homem de regata preta deitado, fundo escuro
Guilherme Leme Garcia na peça 'O Estrangeiro Reloaded', que adapta o romance de Albert Camus - Karime Xavier/Folhapress

O riff de guitarra, em referência a "Creep", da banda britânica Radiohead, não é suficiente para justificar o "reloaded" do título. A apresentação pouco faz para atualizar Camus. É claro que a montagem é uma reedição da primeira, de dez anos atrás; por isso a brincadeira. Mas o niilismo de Meursault ainda é o nosso? O que mudou dos anos 1940, quando o original foi publicado, para cá? O que permanece igual? Seguimos sem futuro? Ou não? Faltou trazer os temas à nossa época.

Ainda assim, a peça vale a pena, em especial aos que estão se introduzindo no universo camusiano. Nunca é fácil fazer uma adaptação, e Leme segura a bronca com talento. A ousadia, que não vem do palco, pode vir do espectador e, quem sabe, do leitor também.

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