Descrição de chapéu Entrevista da 2ª

Vai chegar o momento de fazer parcerias com a Globo, afirma executivo da Netflix

Plataforma explica sua nova estratégia, reconhece erros do passado e diz que roteiristas são a base de todo o trabalho

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Mauricio Stycer Maurício Meireles
Rio de Janeiro

Em busca de conteúdo local nos países onde atua, a Netflix quer trabalhar até com seus principais concorrentes vindos da mídia tradicional —no Brasil, por exemplo, a empresa diz que vai chegar o momento de fazer parcerias com a Globo.

É o que afirma Francisco Ramos, vice-presidente de conteúdo da plataforma para a América Latina, em visita ao Brasil. Segundo ele, a busca de hits domésticos é a principal estratégia da Netflix fora dos Estados Unidos.

Se as séries e filmes depois virarem sucessos globais, como "Round 6", tanto melhor, mas esse não é o objetivo principal. Afinal, diz, é quase impossível algo estourar fora do país sem antes ter dado certo em casa.

Francisco Ramos, vice-presidente de conteúdo para a América Latina da Netflix
Francisco Ramos, vice-presidente de conteúdo para a América Latina da Netflix - Divulgação

Foi essa estratégia que fez a plataforma voltar os olhos para símbolos culturais da América Latina. Nos planos, estão as séries "Cem Anos de Solidão", adaptada do romance de Gabriel García Márquez, "Pedro Páramo", baseada na obra de Juan Rulfo, e "O Eternauta", clássico das HQs argentinas. No Brasil, a maior aposta é "Senna", que vai contar a vida do craque da Fórmula 1 em uma superprodução filmada em quatro países que exigiu a construção de réplicas de 22 carros do piloto e de seus rivais.

Segundo Ramos, a tática atual é uma correção de rumos do que a Netflix fez no começo de sua operação na América Latina, quando executivos americanos decidiam o que ia ser produzido —nem sempre com resultados satisfatórios.

Dentro dessa estratégia, o executivo menciona até ter "conversas" com a emissora brasileira. "A TV linear é muito importante. A Globo especialmente, por causa da presença dominante dela no mercado. É quase um monopólio", diz.

Em nota, a Globo diz que "sempre teve concorrência de players brasileiros e internacionais" e que tem orgulho de ser escolhida por milhões de brasileiros. Segundo a empresa, o cenário fez os modelos de parcerias se ampliarem e a atuação de empresas do setor "pode e deve ser complementar" —lembrando que já tem acordos com empresas como Amazon, Google, Disney e outras.

Ramos recebeu a Folha para uma conversa durante sua visita ao Brasil para o Rio2C, evento da indústria criativa no Rio de Janeiro. Além de comentar os planos da empresa para a América Latina e admitir erros do passado com conteúdo local, ele analisou os passos de seus concorrentes e afirmou que quem toma decisões criativas na Netflix não é o algoritmo.

A Netflix tem trabalhado com grandes obras da América Latina. O que está por trás dessa estratégia?

Não há uma estratégia única, mas tentamos identificar algo que seja único a cada um desses países, que faça que sejamos percebidos como um agente local. Não queremos ser vistos como acumuladores de conteúdo do mundo inteiro.

Brasil e México foram os primeiros países onde a Netflix fez produções originais fora dos Estados Unidos.

Primeiro no México, com "Club de Cuervos", e depois "3%", no Brasil. Eu não trabalhava na Netflix, eu vendia para a Netflix. Mas eles identificaram que havia algo nessas séries que realmente fazia sentido para o público local. Resolveram tentar mais coisas do tipo, isso hoje é um pilar central da nossa estratégia.

Historicamente, produtores latino-americanos se deparam com uma demanda do mercado estrangeiro por uma suposta cor local, que também pode ser uma visão estereotipada de cada país. A Netflix já fez séries com olhar quase folclórico, como "Coisa Mais Linda".

Gostamos de explorar, aprender, desenvolver e avançar com velocidade. Quando estamos certos, dobramos a aposta. Quando estamos errados, aceitamos que erramos. No comecinho, inclusive no Brasil, as primeiras tentativas foram contratadas por executivos nos Estados Unidos. Entendemos que era preciso ter executivos locais e começamos a contratar, primeiro no setor de marketing e depois os profissionais de conteúdo. Mas, para um produtor, é importante fazer sucesso não só em casa, mas também lá fora. Não podemos tirar essa ambição dele.

O compromisso com conteúdo local está relacionado ao debate sobre regulação das plataformas de streaming no Brasil?

Já tínhamos esse compromisso antes de o debate começar. É preciso que haja igualdade de condições para todos os agentes do mercado, para que haja um crescimento de longo prazo da indústria. Não vai ser de um dia para o outro que esse cenário de igualdade vai surgir. É algo de longo prazo, mas muito importante. Em cada país onde atuamos, respeitamos as leis locais, porque somos parte do mercado.

Na América Latina, a Netflix compete com alguns dos maiores grupos de mídia do mundo —no caso do Brasil, com a Globo. Qual é sua análise da concorrência aqui?

Acho que a TV linear é muito importante, tanto no entretenimento quanto nas notícias. A Globo especialmente, por causa de sua presença dominante no mercado. É quase um monopólio. Eles são muito bons no que fazem. Pode haver competição, por talentos, projetos ou pelo tempo do público. Mas [o streaming e a TV linear] são negócios complementares. Em vários países na Europa e em alguns na América Latina, temos parcerias com empresas locais, em coproduções, licenciamento. Fazemos séries que saem primeiro na Netflix e depois vão para emissoras locais e vice-versa. Já fizemos parcerias com a BBC, por exemplo.

No Brasil, a Globo não quer esse tipo de parceria com vocês.

Vamos chegar lá em algum momento [risos].

Mas já tiveram conversas sobre isso?

Nós temos conversas, mas não encontramos o momento ainda. Temos uma relação amigável.

Amauri Soares, diretor executivo da TV Globo e dos Estúdios Globo, disse no Rio2C que eles representam uma visão "anti-algoritmo", um claro recado para vocês. Como o senhor responde a essa crítica?

Está tudo bem [risos]. É tipo no futebol. A Globo é muito poderosa, especialmente num país como o Brasil, onde não há tanta penetração massiva da banda larga. A competição é boa. Sem isso, corremos o risco de ficar deitados em berço esplêndido. Nossas equipes precisam inovar o tempo inteiro.

Soares expressou uma visão de que todas as decisões criativas de empresas como a Netflix são tomadas a partir do algoritmo. É verdade? Quanto das escolhas vem do algoritmo e quanto é intuição?

Não sei se você viu "Bebê Rena". Nenhum algoritmo teria como dizer a um executivo em Londres para produzir uma série assim. Vi antes do lançamento, porque tudo fica disponível antes para os executivos, e logo começou um burburinho dentro da empresa. Entendi que ia fazer sucesso no Reino Unido, mas achei que ninguém ia entender a série fora do país. Qualquer pessoa no mundo nos diria para fazer "Senna", mas nenhum algoritmo seria capaz de nos recomendar "Pssica" ou "Sintonia".

Na apresentação de vocês, Bráulio Mantovani, que foi roteirista-chefe de "Pssica", elogiou as trocas que teve com os executivos da Netflix. No Brasil, há muitas queixas dos autores quanto à interferência desses executivos na criação dos roteiros. Vocês quiseram dar uma resposta a essas reclamações?

Minha experiência como executivo de conteúdo mostra que às vezes há tensões, e elas são resolvidas se podemos ter as conversas difíceis no começo do processo. A série ou filme que você quer fazer está alinhada à nossa estratégia? Às vezes, você acha no começo que está tudo bem, mas é como um casamento. Aí pensa: "Meu Deus do céu, por que eu casei com essa pessoa?" Às vezes há complicações. Mas espero que elas partam de algo positivo —a tentativa de fazer o melhor filme ou série possível.

Quando a Netflix começou suas operações, os produtores se queixavam de que a empresa investia menos em marketing do que os estúdios tradicionais. Essa estratégia mudou?

No começo, quando deixamos de só licenciar conteúdo para investir em produções originais, estávamos tentando provar [o funcionamento] de um modelo, e nossa base [de assinantes] ainda não era tão grande. Precisávamos ter cuidado com os gastos. Mas a realidade de agora é que os filmes ou séries custam o que precisam custar. Você pega o roteiro, faz o orçamento, e os executivos de conteúdo responsáveis pelo projeto precisam estar confortáveis com o orçamento decidido para produzir algo.

Às vezes, eles podem dizer: "Com esse dinheiro, não faz sentido produzir". Estamos tocando um negócio, temos que ser espertos. O que quero dizer é o seguinte: se não nos sentimentos confortáveis em produzir uma série ou filme com determinado orçamento, então não deveríamos produzi-los. Não deveríamos excluir de um projeto o que fez com que nos apaixonássemos por ele [para caber no orçamento].

Outras pessoas já tentaram adaptar as obras de Paulo Coelho para o cinema e não conseguiram. Pode contar como foram as negociações envolvendo "Diário de um Mago" e por que o senhor está confiante que esse projeto vai dar certo?

Gabriel Gurman, nosso executivo, era obcecado por esse livro mesmo antes de começar a trabalhar conosco. E conseguiu convencer Paulo Coelho de que poderíamos fazer essa adaptação direito. Ele foi convencido pelo compromisso de que vamos fazer jus ao livro. O mais importante —e aprendi isso do jeito difícil com a adaptação de "Cem Anos de Solidão, que tem uma estrutura complexa— é a escrita [do roteiro]. Claro, você pode chamar um grande diretor, todo mundo quer fazer um grande filme. Mas é preciso encontrar o jeito certo de traduzir o escrito para a imagem.

As pessoas pensam que a linguagem visual dá espaço para a imaginação sem limites. Mas é o escrito que não tem limites. O visual tem várias contingências —de orçamento, técnicas, de talento. Não sou especialista em Paulo Coelho, mas essa é uma história com emoções verdadeiras e personagens fortes.


RAIO-X | Francisco Ramos, 55

É vice-presidente de conteúdo da Netflix para a América Latina desde 2017. Nasceu no México, mas mudou-se para a Espanha em 1991, onde fez carreira em empresas de mídia como o Grupo Zeta e Antena 3 Televisión, além de empresas de distribuição. Nos anos 2000, passou a atuar como produtor, com mais de 50 filmes e programas de TV no currículo.

Mauricio Stycer viajou a convite da Netflix, e Maurício Meireles, do Rio2C

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