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Como o estilista Luiz de Freitas revolucionou a moda masculina após passar fome

Biografia conta a história do homem que inventou a grife Mr. Wonderful, marca transgressora contra a caretice nos anos 1970

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Melina Dalboni
Rio de Janeiro

Toc, toc, toc, estala o som no chão de mármore. O estilista Luiz de Freitas, de 83 anos, caminha sem pressa nos salões do antigo Palacete Linneo de Paula Machado, hoje Casa Firjan, no Rio de Janeiro.

Nos pés, amarrados por fitas vermelhas, um sapato da mesma cor no estilo Luís 15, o rei francês que no século 18 popularizou o salto alto. Toda a vestimenta do estilista acompanha a pista extravagante do calçado: sedas, cores, texturas, bordados, chapéu.

10.mar.1994 - Luiz de Freitas inspeciona o teto da loja com Laís Monteiro - Acervo Folhapress

Freitas esteve no Rio para um evento de inovação ao lado de sua amiga Dininha Morgado, autora da biografia "Eu, Luiz de Freitas, Mr. Wonderful", que será lançada dia 10, na Faap, e dia 11, na Bienal do Livro de São Paulo.

O estilo de Freitas é o mesmo desde os anos 1970. "Depois que inventaram a palavra básico, a moda acabou", comenta o fundador da extinta Mr. Wonderful, uma das marcas mais transgressoras da moda masculina brasileira, lançada em 1979.

Nos salões de sua grife, circulavam artistas, escritores e cineastas. De Arnaldo Jabor passando por Serginho Groisman, de Caio Fernando Abreu até Gilberto Braga. Detalhe: o autor de "Vale Tudo" pagava pelas roupas, mas pedia que fossem retiradas as etiquetas da grife. "Gilberto não queria que ninguém soubesse qual era a fonte de suas roupas", conta Freitas.

"Sempre achei que moda e estilo são o retrato de uma época", explica a consultora de moda Costanza Pascolato. "O que o Luiz de Freitas fazia tinha uma cara de Brasil: comportamento, espírito, sensualidade, afabilidade, cores e bom humor. Uma moda revolucionária, sim, porque o povo era muito careta. Ele abriu a porta para a fantasia e a imaginação."

Nascido com o destino traçado para ser operário tecelão, Freitas deveria ter a mesma profissão de quase toda população de Pau Grande, cidade fluminense mais conhecida como terra de Garrincha, que girava em torno da fábrica de tecidos América Fabril.

Acontece que sua avó materna tinha certa predileção pelo neto e cismou que ele seria médico. Foi assim que seus tios se cotizaram e pagaram os estudos do menino, que, dedicado, subverteu as previsões da avó. Virou "médico"... de estilo.

A ideia de criar uma grife para tratar a cafonice do homem brasileiro surgiu depois de uma viagem a Nova York, quando surgiu o nome Mr. Wonderful. E a loja, Clínica da Moda, em Ipanema, era decorada com móveis hospitalares e uma cruz vermelha, símbolo de assistência e socorro.

Os primeiros anos no Rio de Janeiro, na década de 1960, foram difíceis. Foi rejeitado em um punhado de ateliês, entre eles, o de Hugo Rocha. Passou fome, dormiu em banco de praça em Copacabana até conseguir os primeiros serviços. Chegou a trabalhar com Lygia Clark e, em 1965, lançou sua primeira marca feminina, a Belui.

Freitas integrou o Grupo Moda Rio, fundado em 1978 por estilistas de marcas cariocas que já faziam sucesso para criar um calendário com o objetivo de fortalecer o comércio de moda.

"Luiz de Freitas foi a grande surpresa positiva que tive quando cheguei ao Brasil após o exílio", comenta Fernando Gabeira no livro. "Era algo destinado a curar a caretice e a falta de imaginação dos homens no vestir. Em um país recém-saído do período ditatorial, reformular o homem brasileiro tinha o sabor de uma ação subversiva."

Informalmente, Gabeira se tornou garoto-propaganda, convencendo clientes a comprar aquela moda colorida e inovadora. "Gabeira uma vez me disse o seguinte", conta Freitas, sempre sorrindo enquanto fala. "Você tem tudo para dar certo. É pobre, negro e gay."

A previsão se concretizou, por um bom tempo. A Mr. Wonderful teve lojas no Rio, em São Paulo, em Belo Horizonte e em outros países, como Portugal e Holanda. Fechou as portas em 1995, depois foi relançada em 2007, durando apenas um ano.

Mais que uma loja, o espaço era um "happening". Entre os clientes internacionais, Madonna, Jean Paul Gaultier, Prince, Freddie Mercury, que comprou 12 leggings coloridas, e Gianni Versace, que levou dez frascos de água-de-colônia.

Certa tarde, enquanto experimentava peças na cabine, o coreógrafo Lennie Dale saiu vestindo apenas botas de salto em plena rua Visconde de Pirajá. "Ele saiu nuzinho com uma ‘mala enorme’. Era bem dotado!", se diverte Freitas.

O dia de trabalho se estendia em festas diárias, muitas no próprio apartamento do estilista. "Fiz uma festa memorável chamada "La Vie en Rose". A comida era toda cor-de-rosa, a música-tema tocou em 12 idiomas e o Guilherme Araújo [produtor musical] estava vestido de rosa da cabeça aos pés", lembra.

Em São Paulo, Freitas morou em um apartamento na alameda Santos, embaixo do endereço dos Titãs. "Era tanta maconha no prédio. Era uma loucura", diz Freitas, completando que não usava drogas "porque não tinha resistência".

"O primeiro champanhe francês que eu pedi na boate Hippopotamus, eu tomei com culpa, porque eu sabia que aquele dinheiro era importante para pagar as costureiras", lembra, às gargalhadas.

A autora da biografia, Dininha Morgado, conta que o estilista passou a fazer figurinos para artistas como Maria Bethânia e Gal Costa depois do fim da grife. "Mais tarde, assinou a comissão de frente da Mangueira, que o sustentou durante muitos anos", conta.

Ele voltou a morar em Pau Grande desde 2012, sobrevivendo com um salário mínimo —um retrato comum do empreendedorismo no Brasil.

Não foi só ali que Freitas se arriscou. No auge da epidemia da Aids, quando perdeu para a doença muitos amigos —como seu sócio, seu vitrinista e seu arquiteto— ele lançou a campanha "Fale Aids", de arrecadação de fundos.

A Mr. Wonderful fez um desfile-protesto no Rio com 21 pessoas diagnosticadas com o vírus HIV, entre adultos e crianças, segurando a faixa "o coquetel tem que ser para todos".

Para o estilista Thomaz Azulay, da The Paradise, a Aids foi uma grande inimiga da explosão criativa de designers gays. "Os anos 1990, que trazem o minimalismo, coincidem com a perda dessas grandes figuras da moda e com a chegada de criadores básicos e, entre muitas aspas, com comportamento hétero. Marcas como a Mr. Wonderful, de repente, ficaram à margem", afirma.

Ao fim da conversa, Freitas dita a Dininha uma dedicatória para o livro. As mãos errantes do estilista não lhe permitem escrever em função de um tremor essencial, diagnosticado pela primeira vez aos 19 anos e confirmado décadas depois.

Com a mesma altivez com que entrou nos salões da Casa Firjan estalando o salto alto, ele lista alguns projetos grandiosos como quem já os vê prontos mesmo sem ter investidores: "Saber que sou uma obra inacabada me estimula. Não é um luxo?".

EU, LUIZ DE FREITAS, MR. WONDERFUL

  • Preço R$ 79,90 (429 págs.)
  • Autoria Dininha Morgado
  • Editora Bem Cultural
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