'Após ouvir Jorge Ben, senti que não precisava mais compor', diz Gilberto Gil

Sensação veio com disco 'Samba Esquema Novo', mas Caetano Veloso fez amigo desistir da 'maluquice'

Gilberto Gil

​A percepção mais nítida de como uma obra de arte transformou a nossa vida é difícil. Há algum resíduo de impacto que se transforma numa espécie de influência, porque aquele livro ou aquele disco se tornaram referências.

"Viva o Povo Brasileiro" (1984), obra de João Ubaldo Ribeiro, me deu uma perspectiva da força do romance e da qualidade de uma narrativa ampla que envolva épocas, personagens, fatos históricos e diferentes naturezas de caráter.

A leitura de um livro produz impactos na vida de todos, mas o domínio da literatura é mais rarefeito para mim —o meu campo passional é a música. "Viva o Povo Brasileiro" corresponde, para mim, ao "Samba Esquema Novo", de Jorge Ben Jor.

jorge sentado no ar, com violão
Capa de "Samba Esquema Novo" (1963), disco de estreia de Jorge Ben - Divulgação

Depois de ouvir Jorge pela primeira vez, senti que não havia necessidade de continuar como compositor. Bastava cantar e interpretar as músicas daquele disco e colocá-las na perspectiva de criações futuras dele a preencher o meu espaço criativo.

Em Salvador, Caetano insistiu para que eu não considerasse essa maluquice de deixar de cantar as minhas músicas para cantar as de Jorge Ben. "Gil, que loucura é essa?", me disse certa vez.

Continuei como criador um pouco em respeito a essa percepção de Caetano, de que havia valor no meu trabalho. Se não fosse por isso, eu talvez tivesse passado mais tempo ainda restrito ao Ben Jor ou procurando nas periferias do repertório de "Samba Esquema Novo".

Estou falando de coisas iniciáticas. O disco de Jorge veio logo depois do LP "Chega de Saudade" (1959), de João Gilberto.

Os dois álbuns causaram um impacto forte na minha percepção e gosto pela música, na compreensão do papel da canção popular, na função do autor e na questão da inovação e da renovação.

gilberto gil canta com jorge ben, que segura guitarra
Gilberto Gil e Jorge Ben Jor durante apresentação conjunta em Mônaco, em 2005 - Eric Gaillard/Reuters

A partir de 1967, no tropicalismo, nossa aproximação com Jorge aconteceu graças ao apreço pelo que ele já tinha feito e à expectativa de que ele continuasse tendo aquele papel importantíssimo.

Eu continuava muito seduzido por tudo aquilo que ele produzia, e era muito grande a minha curiosidade pelo que ele viria a fazer. Sem dúvida, Caetano sentia também assim a importância da obra de Jorge.

"Mas que Nada", "Balança Pema", "Chove Chuva", "Por Causa de Você Menina"... Todas aquelas músicas são da maior importância para mim.

"Samba Esquema Novo" e os três discos de João na bossa nova —"Chega de Saudade", "O Amor, o Sorriso e a Flor" (1960) e "João Gilberto" (1961)— talvez sejam os álbuns brasileiros que fizeram a diferença na minha maneira de fazer música.

Com Jorge, tudo se reúne: o aspecto de João Gilberto que representa Tom Jobim, a decantação da música popular e dos grandes toques dados pelo maestro Heitor Villa-Lobos, além das transformações provocadas pela arte moderna no Brasil.

Eram coisas que o tropicalismo viria a estabelecer como território de arqueologia musical e sociológica. Esses elementos estavam fortemente presentes nestes quatro discos: um de Jorge e três de João.

O disco "Gil & Jorge: Ogum, Xangô" (1975), em que gravamos as nossas canções, é o resultado do encontro, da afetividade já realizada. Não posso assegurar, mas percebo, na progressão dos nossos encontros, que "Filhos de Gandhi" é a minha música de que ele mais gosta.

Recentemente, me reaproximei mais efetivamente com alguns encontros e conversas —fizemos juntos uma música para o disco da cantora Roberta Sá, a pedido dela.

Nos anos 60, Jorge Ben Jor elaborou o afrobrasileirismo tão decantado dali em diante, que deu em todas essas correntes novas de música no Brasil, como Tim Maia, com as influências do soul e do funk.

Jorge realizou isso "avant la lettre", por assim dizer, em 1963. Tudo aconteceu no "Samba Esquema Novo" por mero ímpeto intuitivo, por mera sacação da alma propriamente de Jorge. Precisam surgir lembranças de corações apaixonados por esse disco. E o meu coração é bem o caso. 


Gilberto Gil, 75, cantor e compositor, é um dos maiores nomes do movimento tropicalista. Foi ministro da Cultura (2003-2008).

Depoimento a Claudio Leal.

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