Descrição de chapéu Memorabilia

João Bosco fala sobre o dia em que foi atrás de seu ídolo Dave Brubeck

Pianista americano traduz toda complexidade musical da forma mais educacional possível, diz o cantor

João Bosco

​​A história começa na Folha, num artigo que meu querido amigo Zuza Homem de Mello escreveu na Ilustríssima. Ele contou que sempre quis trocar uma ideia com Ray Charles, mas, diante da oportunidade, alguma coisa o deixava travado.

Isso me lembrou de uma situação parecida que eu mesmo vivi. Na Ilha da Madeira, em Portugal, eu participava de um festival de jazz com meu quinteto. Estava com uma gripe danada —e, viajando em turnê, há pouca chance de se recuperar.

Dave Brubeck também estava programado para tocar no festival, e eu, mesmo debilitado, tinha um plano de procurar por ele.

​Brubeck e Ray Charles foram os primeiros músicos que conheci quando cheguei a Ouro Preto, em 1962, vindo de Ponte Nova (MG). Aos 16 anos, tinha um conjunto de rock. Tocávamos Elvis Presley e alguma música brasileira; depois criamos um grupo instrumental. 

Eu estava dentro da música, mas não em um caminho específico. Os discos desses dois gigantes apareceram nessa hora e me deram direção.

Conheci as músicas de Ray num boteco chamado Bar do João, que ficava ao lado da pensão onde eu morava. O estabelecimento tinha um disco do cantor com uma capa meio flamenguista, vermelha e preta, com a palavra “twist” em letras muito grandes. 

Colegas nativos de Ouro Preto, que tinham uma discoteca muito boa em casa, me fizeram conhecer dois discos do Brubeck: “Time Out” (1959), e “Time Further Out” (1961). Ouvi esses álbuns centenas de vezes.

Fiz até uma música, viajando pela região de Manaus, inspirada pelo tema de “Far More Drums” (de “Time Further Out”), chamada “Babaçu com Brubeck”. Passei a vida inteira acompanhando o trabalho do cara.

Eis então que estou na Ilha da Madeira, em 2004, e quero muito ver a apresentação dele, que seria na véspera da minha, bem no dia em que cheguei à cidade. Mas estou doente, preocupado com a minha performance no dia seguinte, já quase desistindo de ver o show. 

É final de tarde e eu, triste, saio do quarto para tomar um chá no bar do lobby. Pego o elevador e, ao descer, vejo Dave Brubeck andando em direção à saída do hotel. Ele já estava de costas para mim. Esguio, alto, vestia um smoking muito elegante. Atônito, penso: “Ah, vou falar com ele”. 

Todo fã deve falar com ele. Brubeck traduz para nós, naqueles discos, músicas muito complexas como “Blue Rondo à la Turk”, “Unsquare Dance”, “Take Five”. Esse é meu conceito de grande músico: aquele que traduz para o ouvinte toda complexidade sonora no sentido mais educacional possível, como se fosse fácil de repetir (mas não é). Dá para entender o que o cara está fazendo, e isso ajuda a se aproximar dele.

Quando estudei engenharia em Ouro Preto, havia professores que faziam de tudo para me separar deles. Dificultavam tudo. E havia outros que eram o contrário: mestres geniais que davam aulas como cálculo infinitesimal e faziam daquilo algo que nos interessava.

Foi isso que Brubeck fez comigo. Cito-o sempre junto a Moacir Santos como os grandes professores da polirritmia na minha vida. Só que o americano tinha como base de tudo o blues, e o pernambucano, o maracatu. Duas origens diferentes, ricas da mesma forma.

Então, quando o vi passando no hotel, caminhando na minha frente com passos muito firmes —de alguém que sabe para onde está indo—, fui atrás dele, meio cambaleante, cansado. 

E eu, quase 30 anos mais novo, não consigo alcançá-lo.

Quando chego à porta do hotel, alguém já está batendo a porta do carro em que ele havia acabado de entrar. Não sei se não consegui acompanhá-lo ou se, no caminho, fiquei titubeando: “Será que tenho coragem? Será que vou passar o vírus da gripe para esse cara?”.

O pianista americano Dave Brubeck (1920-2012), na Califórnia - Kimberly White - 22.set.2007/Reuters

É um momento emblemático da relação que temos com grandes ídolos ao longo da vida: estamos indo em direção a eles, no sentido de apreciar, de degustar o trabalho. Queremos entrar na música e sumir lá dentro com eles, mas, no fundo, sempre achamos que estamos um passo atrás e não conseguimos tocá-los. 

É como na pintura do teto da Capela Sistina: o homem esticando o dedo para encostar no criador. Tentando, mas não conseguindo.

O exercício da reverência é diário, é algo que nos traz a ideia de respeito ao ofício, de esmero. Se você admite que seu ídolo está além, isso vira um alento para que você estude e se esforce um pouco mais para alcançá-lo. É isso que estimula a continuar. 


João Bosco, 71, é cantor, compositor e violonista, homenageado com o Prêmio à Excelência Musical do Grammy Latino em 2017. Lançou recentemente o disco “Mano Que Zuera”.

Depoimento a Walter Porto.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.