Para Giannetti, ser vira-lata é boa alternativa a uma civilização em crise

Em novo livro de ensaios, economista vira do avesso expressão cunhada por Nelson Rodrigues

Uirá Machado

[RESUMO] Em novo livro de ensaios, economista Eduardo Giannetti vira do avesso o complexo de vira-latas ao afirmar que o caráter mestiço do povo brasileiro indica uma bem-vinda alternativa à civilização ocidental em crise.

 

O economista Eduardo Giannetti gosta de nadar contra a corrente. “Se o país está muito eufórico e otimista, eu fico pessimista. E vice-versa. Sempre tive a tendência de achar que os excessos da imaginação brasileira precisam ser atenuados”, afirma em entrevista à Folha.

A julgar por essa lógica, o atual momento do país parece especialmente propício para o lançamento de seu livro mais recente, “O Elogio do Vira-Lata e Outros Ensaios”. Crise política, polarização social, escândalos de corrupção e estagnação econômica compõem um quadro que a maioria considera desalentador.

Não Giannetti. Separando o “circunstancial da conjuntura do permanente da cultura”, o economista de 61 anos diz: “Nós que temos certa idade já vimos esse ciclo muitas vezes no Brasil. No meio de um ciclo, não se sabe o que vai acontecer. É como uma turbulência grave. Depois que passa e você olha para trás, era só aquilo mesmo, uma turbulência”.

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O economista e filósofo Eduardo Giannetti, durante o debate "Mais um ano perdido?", sobre a situação econômica do país, no auditório da Folha, em São Paulo. - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Daí não decorre necessariamente que a etapa seguinte seja próspera. Superada uma fase muito aquém das expectativas, nada impede que o país apenas volte a sua mediocridade costumeira, certo?

“Um estado de depressão às vezes mobiliza uma energia que de outra forma não aparece”, diz Giannetti, ainda em entrevista. “Grandes criadores têm períodos altamente depressivos que fazem parte de um processo de mobilização de forças.”

O raciocínio alimenta a organização de seu novo livro, uma coletânea de 25 textos escritos de 1989 a 2018 que, como sustenta o autor no prefácio, têm em comum “o potencial de dialogar com o presente”. Um diálogo prenhe de esperanças. “O Brasil, quero crer, está grávido: no limiar de um parto temporão de cidadania.”

A chave para o futuro vislumbrado por Giannetti está no primeiro ensaio, “O elogio do vira-lata”. Único artigo de 2018 e um dos dois que não haviam sido publicados antes, é também o mais engenhoso da compilação. Numa espécie de sessão de psicanálise, o autor deita a alma brasileira no divã e procura livrar-lhe daquilo que, 60 anos atrás, Nelson Rodrigues identificou como a única coisa que nos atrapalhava e às vezes invalidava nossas qualidades no futebol: o complexo de vira-latas.

O Elogio do Vira-Lata e Outros Ensaios

  • Preço R$ 64,90 (348 págs.)
  • Autor Eduardo Giannetti
  • Editora Companhia das Letras
  • Ano 2018

Como se sabe, o dramaturgo definiu o complexo como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. A ideia se aplica a todos os setores, com destaque para o futebol (a Copa como pano de fundo hoje não passa de coincidência). Seria necessário superar esse sentimento para dar vazão a todas as potencialidades nacionais. “O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas”, concluía Rodrigues.

Precisa? Não para Giannetti. Mais uma vez na contracorrente —nessas seis décadas, não faltaram políticos, intelectuais e artistas a repetir o mantra instaurado pelo dramaturgo—, ele sugere o exato oposto: o Brasil precisa ter coragem de se assumir como o vira-lata que é.

A argumentação se desenrola em dois movimentos. O primeiro, negativo, tem a função de combater o vira-lata como xingamento. O segundo, positivo, procura afirmar o vira-lata como elogio —daí, naturalmente, o título do ensaio e do livro.

O passo inicial de Giannetti é fazer uma genealogia da expressão, recorrendo ao método que Nietzsche com frequência empregou. 

Quem é o vira-lata? É o cão ou a cadela sem raça definida, o bicho mestiço, mas também a pessoa sem classe. Ou seja, ao primeiro significado, literal, acrescenta-se outro, figurado e pejorativo, no qual o preconceito salta aos olhos. A miscigenação, pouco importa se do animal ou do ser humano, surge como nódoa, como defeito, sinal de inferioridade em relação aos ditos puros. O brasileiro, povo mestiço, estaria abaixo e aquém do europeu.

“A depreciação do vira-lata inerente ao complexo que leva o nome dele carrega como premissa tácita o culto do ideal de pureza racial, beleza estética, virtude e racionalidade nos moldes definidos especialmente pela vertente anglo-americana da civilização cristã ocidental”, escreve.

Ao mostrar de que modo o vira-lata adquire caráter depreciativo, Giannetti ataca o uso dessa imagem como ilustração do sentimento de inferioridade do brasileiro. Como o próprio autor nota, porém, isso não elimina o sentimento em si. Portanto, a próxima etapa, positiva, exige que o vira-lata se torne desejável —um esforço igualmente nietzschiano de reorientar os valores da sociedade.

Para Giannetti, “o éthos vira-lata representa uma bem-vinda alternativa (ou, ao menos, um necessário corretivo) ao modelo ocidental puro-sangue”, seja na esfera do trabalho, seja na das relações interpessoais. Enquanto a forma de vida anglo-americana prioriza valores como máxima produtividade, competência e sucesso no mercado de trabalho, a mestiço-tropical privilegia os afetos, a alegria, o congraçamento.

O vira-lata, portanto, não é nem melhor nem pior; é o que somos —um jeito válido de ser, com vantagens e desvantagens.

Giannetti enfatiza a palavra “alternativa”, mas soa nítida sua preferência pelos atributos do vira-lata. No fundo, o pensamento esteve latente em boa parte dos demais ensaios da coletânea e certamente em seu livro anterior, “Trópicos Utópicos”. Ali, em 124 aforismos (de novo Nietzsche), ele já deixava solta a ponta que agora veio a amarrar.

Trópicos Utópicos

  • Preço R$ 52,90 (216 págs.)
  • Autor Eduardo Giannetti
  • Editora Companhia das Letras
  • Ano 2016

“Faz sentido a ideia de uma civilização brasileira? Uma resposta afirmativa não precisa implicar nenhum tipo de arroubo xenófobo ou húbris cultural. O que ela implica é a identificação dos nossos valores e uma efetiva adesão a eles”, escreveu na obra de 2016 —repetindo palestra de 2012 incluída no “Elogio...”.

Em conjunto, os dois livros mostram, em prosa elegante e imagens vivas, as preocupações de alguém que há muito tempo não só busca a identidade brasileira mas também questiona os rumos da humanidade. 

Para ele, os três ídolos da modernidade —a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico— estão exauridos. A crise ambiental e a epidemia de transtornos mentais são exemplos de problemas decorrentes de um projeto civilizatório (anglo-americano) que fez da guerra contra a natureza sua principal inspiração.

Não surpreende que muitas das questões levantadas por Giannetti convirjam para a temática ecológica; não custa lembrar, ele foi e é assessor econômico de Marina Silva (Rede). Surpreende, porém, que não atue como o economista típico; em vez de analisar as bases materiais ou institucionais da sociedade, olha antes para o plano das ideias.

No outro artigo de “Elogio...” que não tinha sido publicado antes, ele apresenta Agostinho da Silva, filósofo português morto em 1994 que trata dos “limites do entendimento lógico-racional do universo, nos moldes da ciência moderna”.

Seu maior interesse está no que Agostinho diz “sobre a função planetária dos povos e culturas de língua portuguesa”, com potencial para eleger valores e construir formas de vida “capazes de superar os impasses e ameaças a que chegamos na trilha do tecnoconsumismo ocidental”.

Giannetti encerra esse ensaio lembrando que Agostinho provoca a não nos contentarmos “com nada que seja menos do que sonhar, descobrir e criar um novo mundo”.

Vale como utopia, sem dúvida. Mas, se há outro tema recorrente nos textos reunidos em “Elogio...”, é a distância entre o falar e o fazer, o pensar e o agir, o sonho e a realidade. 


Uirá Machado, bacharel em direito e filosofia, é editor da Ilustríssima. Foi editor de Opinião, repórter de Poder e coordenador de Artigos e Eventos.

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