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Rafael Cardoso

Tela na UFBA não é racista, mas pedido de retirada é acertado

Não há motivos para manter em posição de honra obra de Miguel Navarro y Cañizares que exalta o mito de 13 de Maio

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[RESUMO] A tela "Alegoria da Lei Áurea" (1888), exposta na Universidade Federal da Bahia, representa a Abolição como dom da família imperial aos ex-escravizados, reproduzindo estilo e temática corriqueiros da época. O recente abaixo-assinado que demandou sua remoção, proposto por estudantes da universidade, é inexato ao postular que o quadro e seu autor são racistas, mas acerta ao denunciar a ostentação, nas paredes de uma universidade pública, de uma imagem que tenta disfarçar séculos de brutalidade e injustiça.

Há pouco tempo, Wilson Gomes dedicou uma coluna nesta Folha a alertar para uma nova era de intolerância, cujo portal seriam as universidades e as escolas. Ele tem muita razão. Os candidatos a Savonarola andam cada vez mais confiados, banindo livros à direita, expurgando doutrinas à esquerda, clamando em toda parte por pureza moral e ideológica.

A pureza é um mito, sabemos, mas os moralismos do nosso tempo são movidos sobretudo a mitos. Na fúria de sua combustão espontânea, ajudaram a eleger um "mito" à Presidência da República. Não demora muito, acendem as fogueiras das vaidades, pois só o fogo purifica os desvios da Verdade Única, seja ela qual for.

Reprodução da tela  "Alegoria da Lei Áurea", que ilustra a princesa Isabel e a assinatura da lei que oficialmente encerrou a escravidão no Brasil
'Alegoria da Lei Áurea' (1888), de Miguel Navarro y Cañizares - Reprodução

O episódio que moveu as considerações de Wilson Gomes foi um abaixo-assinado promovido por alunos do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFBA (Universidade Federal da Bahia), pleiteando a remoção de um quadro exposto na Escola de Belas Artes daquela universidade e tido por eles como racista.

Segundo a petição circulada pela representação discente do programa, a permanência da obra junto ao Salão Nobre da instituição seria prova de negligência, causando "espanto, desconforto e violência entre alunes brancas(os) e, sobretudo, negres da Escola de Belas-Artes nos cursos de graduação e pós-graduação".

Apesar do tom aborrecido e de alguns tropeços em matéria de história, o abaixo-assinado tem um fundo de razão. Wilson Gomes talvez se espante ao ler essa frase. Ele é professor da UFBA e conhece melhor que eu os envolvidos. Não é fácil enxergar lucidez onde o obscurantismo se faz tão visível.

No entanto, recusar a lógica binária, das dicotomias simplistas, do nós contra eles é premissa basilar para derrotar o fundamentalismo. Enquanto nossa tacanha revolução cultural não chega às raias das sessões de luta, praticadas pelos maoístas dos anos 1960, compete fazer a autocrítica verdadeira, aquela regida pela reflexão, não pela intimidação.

Já que o objeto em disputa é uma pintura, nada como um pouco de conhecimento arte-histórico para embasar a discussão. O quadro em questão é "Alegoria da Lei Áurea" (1888), de Miguel Navarro y Cañizares, pintor pouco lembrado que nasceu na Espanha em 1834 e chegou ao Brasil em 1876, após passagens por Roma e Caracas.

Segundo Viviane Rummler da Silva, que estudou sua obra, o pintor permaneceu na Bahia até 1882, quando se deslocou para o Rio de Janeiro, onde faleceu em 1913. Nos cinco e poucos anos que ficou em Salvador, participou ativamente do cenário artístico local, colaborando diretamente na criação da Academia de Belas Artes da Bahia, em 1877, antecessora da atual Escola de Belas Artes.

"Alegoria da Lei Áurea" é uma representação bastante convencional em termos de temática e estilo. Ao centro, aparece a então regente, princesa Isabel, em atitude de redentora, abraçando uma imensa cruz com a mão direita e empunhando a Lei Áurea na esquerda. Ao seu lado, sobre um altar atapetado, estão seu filho e consorte, assim como bustos de seus pais, o imperador e a imperatriz, que se encontravam em Milão no fatídico 13 de maio de 1888.

A princesa está ladeada por dois grupos de homens: oito de casaca preta à esquerda e sete de fardão à direita. A maioria pode ser identificada como retratos de deputados, senadores e ministros, muitos deles membros do gabinete João Alfredo, penúltimo governo do período imperial.

Ao fundo e acima da ilustre assembleia, pairam duas figuras angelicais outorgando coroas de glória à princesa, ao busto do imperador e aos dois grupos de homens de Estado. Mais acima, no topo abobadado do quadro, uma efígie de Deus, com ar nada onipotente, é sustentada por uma terceira figura angelical, em meio a um esfumaçado de nuvens.

Abaixo e à frente do poder reunido, estão três mulheres de costas, duas negras e uma branca, ajoelhadas no plano próximo ao espectador. As duas da esquerda se abraçam: a negra estende à princesa uma palma, a branca a saúda com o braço aberto. A outra mulher negra, à direita, segura um bebê, que ergue os braços em postura de louvor.

É uma alegoria corriqueira, bem ao gosto da época, que celebra a Abolição como dom aos ex-escravizados e prova da civilidade e religião das elites imperiais. Mais de um século de historiografia avolumada nos ensinou que a verdade fica bem longe dessa encenação.

Hoje, sabemos que o frágil decreto de liberdade não veio de graça nem resultou da bondade da família imperial, mas foi fruto da batalha ferrenha contra os interesses escravocratas travada pelo movimento abolicionista e assentada na resistência dos próprios escravizados.

Em 1888, contudo, após décadas de luta e o desgaste resultante dela, a sociedade brasileira convencionou forjar o mito do 13 de Maio e buscou se reconciliar por meio de alegorias em que todos afetavam acreditar. Esse pacto da memória seletiva abarcou até mesmo os recém-libertos, muitos dos quais passaram a cultuar a figura da "redentora".

É inexato afirmar que o quadro é racista. Não teria sido percebido como depreciativo no contexto em que foi produzido. Embora subordinadas na hierarquia pictórica, as figuras negras não são passivas. Ao contrário, são as únicas que não parecem bonecos de museu de cera.

Elas operam dentro de uma lógica simbólica peculiar à época. Na iconografia do século 19, era corrente a imagem do cativo ajoelhado, que aparece em outras produções comemorativas da Lei Áurea, desde o pomposo "A Libertação dos Escravos" (1889), de Pedro Américo, até humildes rótulos de cigarros.

'A Libertação dos Escravos' (1889), de Pedro Américo
'A Libertação dos Escravos' (1889), de Pedro Américo - Reprodução

Suas origens datam do século anterior, quando o movimento abolicionista britânico consagrou a efígie de um homem negro em correntes, implorando ajoelhado pela liberdade, como emblema. Ao longo das últimas décadas, estudiosos e pesquisadores vêm explorando a diversidade de significados encerrados nessa iconografia.

Enredada nas contradições da sociedade que a gerou, a alegoria de Navarro y Cañizares é menos um enunciado deliberadamente racista que um delírio patentemente falso. Ao examinar o quadro, talvez com mais atenção que ele merece, se descobre uma série de anomalias.

Além da cruz exagerada, do Deus combalido e das esculturas fantasmagóricas dos imperadores ausentes, há certa confusão no arranjo dos dignatários. Deputados aparecem em fardão de senador, senadores em casaca de deputado. Os retratos dos políticos parecem ter sido copiados, aliás, de uma estampa da Revista Ilustrada, muito conhecida. É bem possível que o quadro seja um estudo.

Dentre essas anomalias, a petição dos alunos da UFBA identificou o advogado abolicionista Luiz Gama entre as figuras representadas, o que seria no mínimo intrigante para pensar o sentido da obra.

O abaixo-assinado afirma que o quadro "evidencia a grave relação de Canizares com um projeto ideológico racista". É injusta a acusação, a não ser que se entenda que viver e trabalhar em uma sociedade racista significa compactuar com sua ideologia.

A julgar pelos escritos de Manuel Querino, Navarro y Cañizares era mais aliado que adversário. Artista, escritor e primeiro historiador da arte afrodescendente do Brasil, Querino foi aluno do pintor espanhol e deixou registrada a base do que sabemos a seu respeito. Por ser seu contemporâneo, o juízo do eminente intelectual baiano carrega mais peso que o nosso. A prudência recomenda menos pressa em apedrejar os vultos do passado pelo pecado de terem pertencido ao seu tempo.

Onde o abaixo-assinado acerta em cheio é quando denuncia o imobilismo dos responsáveis por manter a obra em exposição. Cento e trinta e cinco anos anos depois da Lei Áurea, não há justificativa para continuar a mitificar aquele decreto apenas em palavras. Nem há espaço, nos dias de hoje, para ostentar nas paredes de uma universidade pública uma imagem que tenta disfarçar séculos de brutalidade e injustiça com uma alegoria insossa de reconciliação.

As marcas do escravagismo não foram apagadas em 1888. A ferida continua aberta. É disso que as centenas de pessoas que assinaram a petição se ressentem quando olham para a tela de Navarro y Cañizares e enxergam apenas a continuidade do racismo e da opressão. Ao permanecer no mesmo lugar de honra, exposto da mesma forma de sempre, a obra denuncia que o "ethos" da instituição não acompanhou a evolução da sociedade mais ampla.

Em função da polêmica atual, o quadro foi retirado de exposição. É uma solução pontual, mas não resolve a questão maior. As obras do passado que causam ofensa aos olhos do presente precisam antes ser contextualizadas pelo acréscimo de informações escritas, pelo trabalho educacional e de monitoria, pelo confronto com outras obras, por intervenções artísticas, por discussões em sala de aula.

As melhores análises arte-históricas não prestam para nada se não forem visíveis e acessíveis. Idem para os finos debates sobre liberdade de expressão e censura. As muitas ponderações conduzem à inércia, e existem situações em que o consenso informado aponta para a ação. Em nome da boa prática da história da arte, as instituições museológicas (que ainda não o fizeram) precisam arrumar suas paredes.

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