Saiba quem foi um dos autores favoritos de Hilst, hoje quase esquecido

Ano em que Hilda será destaque da Flip marca dez anos da morte de escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke

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Rodrigo Simon

[RESUMO] Ano em que Hilda Hilst será destaque da Flip marca também uma década de morte daquele que ela considerava um dos maiores escritores brasileiros: Ricardo Guilherme Dicke, hoje praticamente desconhecido.

dicke segura livro seu em frente a estante
O escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke, em foto de 2000 - Délcio JB/A Gazeta

A escolha de Hilda Hilst como homenageada da 16ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty se deve ao fato de sua obra extrapolar fronteiras, segundo apontou o diretor do evento, Mauro Munhoz. "Assim como outros poetas brasileiros, [ela] leu Drummond, Bandeira e Cabral, mas leu também Fernando Pessoa, Saint-John Perse e Rainer Maria Rilke", disse.

Não é de hoje que a crítica busca identificar, entre nomes nacionais e estrangeiros, influências literárias que serviriam como chave para decifrar a sofisticada produção da escritora paulista. No entanto, ninguém parece se lembrar de que Hilst sistematicamente incluía em sua lista de autores mais admirados um brasileiro hoje esquecido.

Em outubro de 1989, em entrevista ao caderno Ideias/Livros, do Jornal do Brasil, as professoras Vilma Arêas (Unicamp) e Berta Waldman (USP) questionaram Hilst sobre as constantes afiliações a estrangeiros, como Beckett. As pesquisadoras queriam saber a qual linhagem ela pertencia do ponto de vista nacional.

"Um homem raro e especial que me impressiona muito é o Ricardo Guilherme Dicke, autor de 'Madona dos Páramos'. Nele descubro o fervor e a potência, pois a literatura não é nada se não for o essencial", respondeu Hilst. Talvez para surpresa das entrevistadoras, ainda arrematou: "Seu texto é mais bonito que o de Guimarães Rosa".

Se isolada, a declaração talvez pudesse ser atribuída à generosidade da escritora em relação a outros autores que, como ela, não recebiam a atenção que julgava justa por parte da crítica e dos pesquisadores. Mas em ao menos outras quatro ocasiões Hilst fez questão de apontar o mato-grossense Dicke (1936-2008) como um dos maiores escritores brasileiros, ao lado de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Em janeiro de 1987, em entrevista ao amigo e escritor Caio Fernando Abreu, Hilst dizia ter encontrado a perfeição literária em "A Morte de Ivan Ilitch", de Tolstói. Na novela, publicada pela primeira vez em 1886, o russo teria chegado ao centro que ela buscava em seus livros, um ponto que nem mesmo grandes nomes do modernismo (James Joyce, Franz Kafka, Marcel Proust e Virginia Woolf) teriam alcançado.

"Eu tenho uma verdadeira ojeriza pelo relato, pela história factual (...) Me interessam mais os estados emocionais e passionais", disse Hilst.

Abreu perguntou se alguém na literatura brasileira teria logrado se aproximar desse centro, ao que Hilst prontamente respondeu: "Ricardo Guilherme Dicke, um homem impressionantemente prolixo, com uma linguagem que tem uma oleosidade fascinante. Numa novela chamada 'Madona dos Páramos', ele conseguiu o centro dele: esse centro prolixo, complexo, onde existe a volúpia da palavra".

Mas quem seria esse autor que, mesmo sem ter pertencido ao cânone da literatura brasileira, encantou não só Hilda Hilst mas também nomes que vão do cineasta Glauber Rocha a escritores contemporâneos como Marçal Aquino, passando por ninguém menos que Guimarães Rosa?

Nascido em Raizama, um pequeno distrito da chapada dos Guimarães, em 16 de outubro de 1936, Dicke deixou seu estado natal pouco antes de completar 30 anos. Tinha planos de ir a Paris estudar pintura. Sem dinheiro, acabou na capital fluminense, onde teve aulas com artistas plásticos como Ivan Serpa e Iberê Camargo e se formou em filosofia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Colega de classe do escritor, o poeta Antonio Cicero, hoje imortal da Academia Brasileira de Letras, lembra de uma figura excêntrica e já voltada à literatura. "Numa aula de lógica matemática, o professor estava falando sobre a diferença entre proposições analíticas e sintéticas quando Ricardo, interrompendo a aula, pergunta: 'Professor, e Goethe?'".

Num apartamento em Santa Teresa, Dicke escreveu seu romance de estreia, "Deus de Caim" (1968), um dos contemplados no segundo Prêmio Walmap, que tinha no júri Guimarães Rosa, Jorge Amado e Antonio Olinto, a quem coube relatar a impressão deixada pelo jovem mato-grossense: "Rosa falou de sua força envolvente, de sua impetuosidade vocabular. Jorge Amado realçou sua narrativa, sua coragem de narrar sem recursos falsamente literários. Ali estava um romancista de tipo novo, um homem capaz de abalar a nossa ficção", resumiu Olinto.

O segundo romance, "Caieira", ganhador do Prêmio Remington de Prosa, sairia apenas uma década depois, em 1977. Com um exemplar na mão, Glauber Rocha bradou para as câmeras do programa "Abertura", na extinta TV Tupi, que, apesar de desconhecido, Dicke era o maior escritor brasileiro.

"Madona dos Páramos", seu terceiro romance, ganhou o Prêmio Ficção de Brasília, da Fundação Cultural do Distrito Federal, em 1981, e é apontado como sua obra-prima, mas também pode ser visto como seu canto do cisne. É que, pouco antes, no fim dos anos 1970, Dicke havia voltado a morar em Mato Grosso e, aos poucos, foi desaparecendo do circuito literário.

Em entrevista à Folha, em 2001, Dicke disse ao colega escritor Marcelo Rubens Paiva que a distância impedia que seus livros fossem publicados por grandes editoras.

A distância, contudo, não impediu que ele caísse nas graças de Hilda Hilst. A escritora ficou tão impressionada com "Madona dos Páramos", a quem foi apresentada pelo crítico Léo Gilson Ribeiro, que decidiu procurar o autor. A partir dali, passou a recomendar os livros de Dicke a todos os amigos.

Gutemberg Medeiros foi um deles. "O que ela mais admirava nele era de ordem especular: o tratamento da linguagem, a capacidade de transformar a língua portuguesa". O pesquisador conta que, enquanto o mato-grossense preferia o contato por cartas, Hilst gostava de telefonar. "Vira e mexe ela ligava para ele para falar de leituras ou de fatos que via nos jornais diários", diz.

Em maio de 1987, em enquete realizada pelo Jornal do Brasil, a escritora indicou o nome de Dicke como "intelectual do ano".

A distância física entre dois escritores reclusos, no entanto, fez com que só se encontrassem pessoalmente uma única vez. No fim de 1992, acompanhado da esposa Adélia e da filha Ariadne em viagem de férias ao Rio de Janeiro, desviou o caminho para passar algumas horas com sua grande admiradora em Campinas.

"Hilst ficou muito ansiosa antes da visita. Ela pediu que o Dante [Casarini, artista plástico com quem ela foi casada] comprasse um bom uísque, seu chá predileto e biscoitos amanteigados. No dia, escolheu uma blusa linda, que só usava em ocasiões muito especiais", relembra o artista plástico Jurandy Valença.

Mesmo à distância, eles seguiram amigos e admiradores mútuos até o final. As cartas que Dicke endereçou a Hilst estão no acervo da escritora mantido na Unicamp. Nelas, o mato-grossense se refere à amiga como "Salamandra do Nepal".

Em dezembro de 2003, aos 73 anos, Hilst concedeu sua última entrevista, publicada pelo jornal O Globo em 14 de fevereiro de 2004, dez dias após sua morte. Questionada sobre quem seriam os maiores escritores brasileiros, disse: "Sei que sou um deles. Guimarães Rosa, Machado de Assis. Tem vários. O Guilherme Dicke, que praticamente não é conhecido, também é um gigante".

Autor de um total de 15 livros, a maioria fora de catálogo, Dicke morreu em Cuiabá, aos 71 anos, no dia 9 de julho de 2008, dez anos antes de a Flip homenagear sua grande amiga e admiradora. 


Rodrigo Simon é mestre em letras pela USP e doutorando em teoria e história literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

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