[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página está no romance “Semente de Bruxa”, que faz parte do projeto britânico Hogarth Shakespeare, que convida autores contemporâneos para fazer releituras do bardo. O volume escrito por Atwood, inspirado na peça “A Tempestade”, será lançado no Brasil pela editora Morro Branco em outubro.
I. Passado sombrio
1. Praia
Segunda-feira, 7 de janeiro de 2013.
Felix escova os dentes. Depois, escova seus outros dentes, os falsos, e os desliza para dentro da boca. Mas eles não se encaixam bem, apesar da camada de adesivo rosa que ele aplicou; talvez sua boca esteja encolhendo. Ele sorri: a ilusão de um sorriso. Fingimento, falsidade, mas quem vai saber?
Em outros tempos, ele teria telefonado ao dentista; marcado uma consulta, e se sentaria na luxuosa poltrona de imitação de couro, diante do rosto preocupado cheirando a enxaguante bucal, e das mãos habilidosas empunhando instrumentos reluzentes. “Ah, sim, entendi qual é o problema. Não se preocupe, vamos arrumar isso para você”. Era como levar o carro para a regulagem. E ele ainda poderia ser agraciado com música nos fones de ouvido e um comprimido de semi-nocaute.
Mas, nesse momento, ele não pode pagar por um ajuste profissional desse tipo. O plano odontológico dele é mixuruca, por isso está à mercê de seus dentes pouco confiáveis. Tanto pior. É tudo que ele precisa para sua última apresentação, que se aproxima: cair a dentadura. “Agora nossa fechta acabou. Osh nossos atorish”... Se isso acontecesse, sua humilhação seria completa; ao pensar nisso, fica vermelho até os pulmões. Se as palavras não forem perfeitas, a intensidade exata, a entonação delicadamente ajustada, o feitiço falha. As pessoas começam a se mover nas poltronas, tossem, e vão para casa no intervalo. É a morte.
— Muá-mué-mui-muó-muu —, ele diz para o espelho cheio de manchas de pasta de dente que fica acima da pia da cozinha. Abaixa as sobrancelhas e projeta o queixo. Então, força um sorriso: o sorriso forçado de um chimpanzé encurralado, que em parte é de raiva, em parte, de ameaça e, em parte, de desalento.
Como ele decaiu. Como desanimou. Como se diminuiu. Improvisando essa frase vazia, morando em um pardieiro, ignorado em um fim de mundo; enquanto Tony, aquele bostinha que vive se autopromovendo, se exibindo, perambula por aí com os ricos e entorna champanhe, devora caviar, línguas de cotovia e leitões, frequenta festas de gala e se deleita com a adoração de seu séquito, de seus lacaios, de seus bajuladores...
Que outrora foram os bajuladores de Felix.
Isso dilacera. Envenena. Fermenta a vingança. Quem dera...
Chega. “Ombros retos”, ele ordena ao seu reflexo cinzento. “Segura a onda.” Ele sabe, sem olhar, que está ganhando uma pancinha. Talvez devesse arranjar uma cinta.
Esquece! Isso aperta a barriga! Há trabalho a ser feito, tramas a serem tramadas, fraudes a serem fraudadas, vilões a serem enganados! “Três tigres tristes para três pratos de trigo. Ela perambula pela beira da praia procurando pequenas madrepérolas preciosas.”
Aí. Nem uma sílaba errada.
Ele ainda é capaz de fazer aquilo. Vai conseguir, apesar de todos os obstáculos. Logo no início, vai enfeitiçar a todos de tal modo que lhe darão até as próprias calças, não que ele vá apreciar a visão resultante. Vai deixá-los maravilhados, como diz a seus atores. “Vamos fazer a mágica!”.
E enfiá-la goela abaixo naquele bastardo ardiloso e perverso, o Tony.
Margaret Atwood, escritora canadense, é autora de “O Conto da Aia” e “Alias Grace”.
Heci Regina Candiani, doutoranda em estudos de gênero, é jornalista, cientista social e tradutora.
Marcos Garuti é artista visual.
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