Escritor chileno lembra duas noites intensas ao lado de George Bush

Ariel Dorfman rememora dias passados em hotel junto com o ex-presidente americano

Ariel Dorfman

[RESUMO] Escritor chileno lembra dias que passou hospedado no mesmo hotel onde estava George Bush, morto no dia 30; o autor reflete sobre o legado do líder americano, que dirigiu a CIA durante a ditadura Pinochet, e seu papel diante do que Trump representa hoje.

 

Agora que George H. W. Bush dorme por toda a eternidade, não posso deixar de recordar duas noites intensas nas quais minha mulher e eu dormimos a poucos metros do quarto onde se alojava o ex-presidente, sumamente vivo.

Essa justaposição promíscua se deu perto do final de outubro de 2001, na cidade de Sydney, onde me haviam convidado para dar a palestra inaugural que comemoraria o centenário da Federação da Austrália.

Havíamos preferido não ficar na palacial Casa do Governador, com criados à nossa disposição, optando por um quarto maravilhoso no Park Hyatt que tinha uma vista inigualável da baía e da Opera House, além de prometer privacidade apreciável. A vista se mostrou garantida, mas não a tão ansiada privacidade.

Algumas horas depois de nossa chegada, o gerente do hotel nos procurou para discutir algo importante. Homem corpulento e afável de origem espanhola, ele nos recebeu em um canto separado do saguão. Queria saber —e seu constrangimento era visível— se não nos incomodaríamos em trocar nosso quarto, só por dois dias, por um apartamento igualmente belo na outra ala do hotel.

George W. Bush brinca com a mão sob o queixo em discurso
George H.W. Bush brinca durante discurso no Texas, em 2005 - Karl Stolleis/Getty Images/AFP

Já tendo desfeito as malas e dispondo da paisagem mais espetacular de Sydney, não foi difícil responder que não tínhamos a menor intenção de nos mudarmos. Havia alguma explicação para seu pedido inesperado? O gerente pigarreou e então nos disse que não podia esclarecer o assunto por razões de segurança, mas que, naturalmente, acataria nossa vontade.

Foi apenas naquela noite, quando nossos anfitriões do centenário nos buscaram para nos levar para jantar fora, que seu chefe de protocolo mencionou, muito de passagem, que estávamos dividindo o Hyatt com ninguém menos que Bush pai, que estava em Sydney com um séquito altamente visível para assistir a uma reunião do Grupo Carlyle, a grande empresa financeira que ele assessorava havia três anos (soubemos, meses depois, que nessa ocasião foi pedido à família Bin Laden que tirasse seus fundos da empresa).

De volta ao nosso hotel, Angélica e eu não conseguíamos conter nossa alegria desvairada por termos privado Bush dos aposentos que ele tanto queria. Uma vez na vida tínhamos ganhado de um dos figurões que sempre conseguem o que querem. 

Para sentir antipatia por esse figurão em particular, bastava pensar na invasão do Panamá, no tratado do Nafta, no perdão presidencial a Elliott Abrams, aquele defensor dos contras e dos esquadrões da morte, e, é claro, na sua vice-presidência ao lado de Ronald Reagan. 

Mas nossa aversão tinha uma origem mais pessoal: Bush foi diretor da CIA em 1976 e 1977. Como tal, não havia como não estar totalmente a par da devastação imposta ao Chile pela ditadura pró-norte-americana de Pinochet. Ele provavelmente tinha facilitado a coordenação dos aparelhos de inteligência dos dois países numa época em que opositores ao regime chileno continuavam a desaparecer, vários campos de concentração ainda estavam abertos e torturava-se em grande escala. 

Mais indesculpável ainda era que Bush não demonstrava o menor sinal de ter se arrependido da responsabilidade dos Estados Unidos diante de tanto sofrimento. Por acaso ele não havia declarado —quando um míssil de sua Marinha explodiu um avião iraniano com 290 civis inocentes a bordo, em 1990— que “nunca pediria desculpas pelo que fazem os Estados Unidos da América. Nunca. Não me importa quais sejam os fatos”?

Bom, aqui estava um fato que esse homem que ajudou a nos roubar nosso país não poderia ignorar: ele não nos roubaria nossa vista magnífica!

Voltamos ao nosso quarto —depois de passar por dois homens musculosos no corredor, montando guarda diante da porta ao lado da nossa— e começamos a gargalhar como doidos, lançando uma enxurrada de comentários indecentes sobre o ex-presidente. Imaginamos-no atormentado, revirando-se sobre seu colchão de luxo, louco de frustração, derrotado por dois chilenos cuja existência desconhecia.

“Ei”, falei a Angélica, “que tal tentarmos ouvir o filho da puta através da parede?”. Mas as paredes, como seria de se supor nesse tipo de hotel, eram grossas, a noite era silenciosa, e nossa alegria foi minguando lentamente, dando lugar a uma ideia assustadora.

“E se acontecer alguma coisa com o cara hoje à noite ou amanhã?”

Os ataques do 11 de Setembro tinham ocorrido seis semanas antes, e que alvo mais sedutor poderia haver para os terroristas do que o pai do presidente americano em exercício? Nós nos olhamos, consternados: o que aconteceria se, por alguma coincidência maluca, um atentado fosse lançado justamente agora contra Bush pai? Quem seriam os dois primeiros suspeitos, que tinham motivo e oportunidade suficientes?

Os revolucionários chilenos que dormiam no quarto ao lado.

Teria a equipe de segurança aproveitado nossa ausência para revistar o quarto e plantar microfones? Se sim, teriam ouvido nossas gargalhadas, nossas piadas e alusões pouco elogiosas a Bush e estariam nos espionando naquele exato instante. 

Não demoramos a descartar essas especulações paranoicas, mas, mesmo assim, enquanto eu tentava pegar no sono, foi me invadindo o medo de que o mundo pós-Torres Gêmeas, com seu medo penetrante e sua incipiente vigilância potencial dos cidadãos, estava exibindo semelhanças estranhas com o do Chile do qual nos havíamos exilado. Podíamos exilar Bush de seu quarto cobiçado, mas o mundo pertencia a ele, a seu filho, a seus acólitos e cúmplices.

Logo cedo na manhã seguinte, tive ocasião de confirmar quão irrefutável era seu domínio.

Eu estava em nosso terraço exclusivo de frente para a baía de Sydney, fazendo alguns exercícios de ioga e aquecimento, tão perto da água que quase podia tocar nela, quando quem apareceu de repente a poucos metros de distância na esplanada que separava o hotel do mar senão o próprio Bushíssimo, caminhando rapidamente em direção ao centro da cidade. 

Ele estava vestido informalmente, como se estivesse indo jogar golfe, e cercado de um cortejo grande: dois seguranças musculosos, alguns assessores engravatados, alguém que devia ser um secretário, todos eles silenciosamente obsequiosos, todos posicionados a uma distância prudente, respeitando a fronteira protetora invisível que isolava o ex-presidente.

Quem estava mais perto de Bush, meio passo atrás, era um militar de porte avantajado, com os cabelos cortados à escovinha e tantas medalhas penduradas do uniforme que parecia um milagre que o peso não o fizesse tropeçar. Um general, no mínimo, pensei.

De repente Bush ergueu o braço direito no ar e estalou os dedos esticados para trás, sem se dignar a olhar para o homem que o seguia. O oficial reagiu célere, apresentando do nada um tubo que colocou na mão de seu amo. Pude ver que era protetor solar, já que George pai começou a untar-se fartamente no pescoço e nos antebraços, sem atrasar o passo e definitivamente sem agradecer ao assistente.

Naquela noite, meditando sobre essa experiência, fui eu quem se revirou na cama, sem conseguir pegar no sono, a poucos metros do homem que tivera o destino da humanidade nas mãos e que devia estar sonhando com sabe-se lá que anjos, todos lhe trazendo toneladas de bloqueador solar. 

A mensagem que Bush me transmitira me perseguia. Sem ter a menor noção de que um allendista chileno presenciara sua caminhada, ele me dera uma aula sobre o que importa de verdade no grande esquema da história. Nossa minúscula posse do quarto que ele escolhera, nossa doce vitória vicária, era insignificante diante desse seu gesto soberbo. Nada que lhe fizéssemos modificaria o sentido ou as implicações do gesto, nada mudaria a certeza patrícia de Bush de que ele e sua dinastia haviam nascido para reinar.

Uma certeza que ele certamente transmitiu a seu rebento, esse outro George, que acabou sendo a encarnação viva do império dos dedos paternos estaladores, sentindo-se dono do mundo, como se este fosse de fato um tubo de protetor solar para ser apertado e esvaziado à vontade.

Paradoxalmente, foi esse filho fanfarrão que, com o tempo, me levou a suavizar minha impressão do legado de George Herbert Walker Bush. Basta recordar como o jovem Bush devastou o Iraque e o Afeganistão, para não falar da economia americana, para apreciar a presidência de seu pai como algo quase respeitável, para quase sentir saudades do Partido Republicano daqueles tempos, que ainda não estava inteiramente envenenado pelo ódio e pela cobiça —e nem quero mencionar Trump por enquanto!

O primeiro Bush pode ter sido parcialmente responsável por milhares de cadáveres apodrecidos na “Rodovia da Morte” no Iraque em 1990, mas ele não avançou até Bagdá; consta, inclusive, que as imagens desse massacre no deserto levaram esse veterano da Segunda Guerra Mundial, na qual serviu com honra, a desistir de derrotar Saddam Hussein

Acrescentemos a isso suas políticas a favor dos deficientes e dos imigrantes, além de seu encontro com Gorbatchov, em que deu por encerrada a Guerra Fria, e ainda seu trabalho humanitário depois de deixar o governo, para que sua passagem pela Casa Branca não fosse vista como algo inteiramente nocivo.

E quem pode negar que o engrandeceram suas opiniões francas acerca de Cheney e Rumsfeld, essa dupla dinâmica da destruição, ou sua oposição obstinada a Trump?

Mesmo assim, agora que a morte veio buscá-lo e ele já não exerce domínio neste mundo, agora que o estalar de seus dedos não pode protegê-lo do destino que alcança todos os mortais nem defendê-lo contra o sol negro da eternidade, não consigo arrancar de minha memória aqueles dedos estalando naquela manhã remota na Austrália.

Cachorro deitado ao lado do caixão do ex-presidente Bush
O cachorro Sully acompanhou o funeral do ex-presidente ao lado do caixão - Brendan Smialowski/AFP

Essa memória persiste porque compreendo, com angústia, que apesar dos muitos defeitos de Bush pai, eu preferiria ver o seu dedo a um centímetro do gatilho nuclear do que o de um fanfarrão ignorante e inseguro, que é capaz de exterminar a humanidade com uma ordem impetuosa e confusa. 

Mas o tempo também me permitiu uma visão mais nuançada daquele incidente em Sydney. Hoje esse gesto arrogante do velho Bush parece mais triste, quase delirante em sua certeza de que sua dinastia enaltecida iria prevalecer. 

A derrota ignominiosa de Jeb —o rebento favorito, que deveria ganhar as primárias e a Presidência— pressagiava uma rebelião pseudopopulista contra os privilégios e as prerrogativas, uma insurgência contra as elites e as corporações em vastos setores dos Estados Unidos que levaram o destemperado e desagradável Trump a uma Casa Branca onde sua presença era inconcebível. O mundo não pertencia a G.H.W. Bush e seus filhos, afinal, pelo menos não como ele sonhara.

Menos ainda, porém, pertence a mim, a meus descendentes ou aos filhos da maioria dos habitantes deste planeta, uma humanidade que está cada vez mais longe de controlar seu próprio destino.

Porque o que é inegável é que aquele gesto imperial naquela manhã na Austrália continua a exemplificar tudo que vai mal em nosso mundo atual, o mundo que foi criado graças à cumplicidade de líderes como o velho Bush e que acabou por permitir que alguém como Trump chegasse ao poder.

George Herbert Walker Bush não descansa em paz.

Nós também não.


Ariel Dorfman é escritor chileno, autor de “Para Ler o Pato Donald” (Paz e Terra) e “O Longo Adeus a Pinochet” (Companhia das Letras).

Tradução de Clara Allain.

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