Quem é Beto Ricardo, que mudou imagem do índio no Brasil

Antropólogo conta em livro sua luta pela valorização da cultura indígena e ambiental

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Beto Ricardo na demarcação das Terras Indígenas do Rio Negro, no Amazonas, em 1991

Beto Ricardo na demarcação das Terras Indígenas do Rio Negro, no Amazonas, em 1991 Pedro Martinelli/ISA

Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

São Paulo

[RESUMO] Livro "Uma Enciclopédia nos Trópicos – Memórias de um Socioambientalista" conta a história de Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental, ONG que Ailton Krenak descreve como fortaleza civil contra a desinformação sobre os indígenas no Brasil, animando o debate público com mapas e dados de qualidade. Militante discreto e solidário, mas firme, Beto teve participação destacada em momentos decisivos, como a mobilização que rendeu um capítulo inteiro na Constituição de 1988 sobre a questão indígena.

Na segunda metade dos anos 1980, provavelmente em 1987, uma sugestão do jornalista Leão Serva me levou a subir pela primeira vez a escadaria do anexo do Colégio Sion na avenida Higienópolis, 983. Foi um encontro com duas forças da natureza: Beto e Fany Ricardo, na primeira aula de um curso intensivo de indigenismo que não terminaria tão cedo.

Ali, no Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), se publicava desde 1980 um compêndio que seria de consulta obrigatória nas quatro décadas seguintes, "Povos Indígenas no Brasil". Apelidado de PIBão, pelo número de páginas e pela ambição, a obra já conta 13 edições, com 6.000 páginas de análises e notícias, além de 2.500 mapas, 1.700 vídeos e 100 mil fotos no acervo digital.

Comunidade Tucumã Rupitã, na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, em 1999
Comunidade Tucumã Rupitã, na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, em 1999 - Pedro Martinelli/ISA

O PIBão está no epicentro do volume autobiográfico de Beto Ricardo, "Uma Enciclopédia nos Trópicos – Memórias de um Socioambientalista", escrito com Ricardo Arnt, à venda também na loja do Instituto Socioambiental. Como afirma Serva no posfácio, "o Programa Povos Indígenas no Brasil assegurou a informação necessária para que o Estado racista não apagasse de vez a existência dos índios".

Avesso a holofotes, Beto, articulador paciente, solidário, determinado e firme a ponto de soar incômodo, foi o protagonista de bastidores (passe o oximoro) de avanços marcantes na questão indígena brasileira, assim como na pauta ambiental. Não sem retrocessos amargos, pelo menos de 2007 para cá, mas de toda maneira com uma derivada ascendente, como fica claro no livro.

O ponto de virada se deu com a Constituição de 1988 e seu oitavo capítulo, Dos Índios. Logo no primeiro artigo (231), essa parte da Carta reconhece "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Invertia-se nessa época o que antes se considerava uma tendência irreversível de extinção dos povos indígenas, por sua "aculturação" ou "integração" à sociedade brasileira. A reviravolta se iniciara anos antes, e Beto estava lá, trabalhando em articulação que levaria um jovem Ailton Krenak ao gesto icônico de pintar o rosto de preto na tribuna do Congresso Constituinte.

Só na primeira metade do século 20 haviam desaparecido 83 etnias, constatara Darcy Ribeiro em "Os Índios e a Civilização" (1970), com base em dados recolhidos por inspetorias do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), precursor da Funai, quando foi diretor de sua seção de estudos, em 1957. Beto, já formado em antropologia na USP e integrante do Cedi desde 1974, achava crucial retomar o levantamento das populações, mas não com a metodologia antiga.

Em lugar de órgãos do Estado na ditadura militar, o jovem discípulo encasquetou de reunir informações por meio de uma rede ampla da sociedade civil, com antropólogos, padres católicos, pessoal de saúde e assistentes sociais. Darcy Ribeiro não gostou. "Me recusar a trabalhar com Darcy era uma opção aflitiva. Eu o admirava muito", conta Beto em "Uma Enciclopédia nos Trópicos".

Já professor de antropologia na Unicamp, ele contava arregimentar estudantes para colher dados nas aldeias. Em três anos na universidade paulista, consolidou amizades com pesquisadores da estatura de Peter Fry e Manuela Carneiro da Cunha e travou contato com um antropólogo que se tornaria o maior parceiro intelectual, Eduardo Viveiros de Castro –ainda que tenha participado da banca campineira que preteriu o estudioso carioca em concurso para professor de etnologia.

Em 1978, tornou-se secretário-geral do Cedi. Dois anos depois sairia a primeira edição do PIBão, ainda com o título Aconteceu e periodicidade anual, expandida a partir de 1985 até virar quinquenal. A última versão, 2017/22, saiu no ano passado com 828 páginas de dados e registros de 252 povos falantes de mais de 160 línguas, ocupando 13,7% do território nacional em terras protegidas.

A transformação do cenário desolador dos anos 1970 foi incubada no Cedi e nas organizações que seu grupo ajudou a criar. Em 1979 tinha nascido a União das Nações Indígenas (UNI), com lideranças xavantes, terenas e kadiwéus —e um jovem editor de publicações, Ailton Krenak.

No prefácio de "Uma Enciclopédia", o agora imortal da Academia Brasileira de Letras descreve o Cedi como "uma fortaleza civil contra a desinformação sobre os indígenas no Brasil, com Beto Ricardo animando os debates públicos".

Animação não faltava. Nos anos 1980, logo após a anistia e o retorno de exilados em 1979, indígenas e ambientalistas brasileiros começaram a levar suas demandas para fóruns nos Estados Unidos, o centro do capitalismo mundial, como as 17 audiências em comitês do Congresso norte-americano entre 1983 e 1986, e reuniões do Banco Mundial.

Com ajuda de Steve Schwartzman (Environmental Defense Fund), Barbara Bramble (National Wildlife Federation) e Jason Clay (Cultural Survival), viajaram Krenak, José Lutzenberger, Mary Allegretti, Chico Mendes e Paulo Paiakan. As campanhas internacionais começaram a afetar recursos de auxílio ao desenvolvimento, enfurecendo o governo militar brasileiro, nos estertores ditadura, e a recém-inaugurada Nova República com José Sarney, como na suspensão de desembolsos para o Polonoroeste que devastava Rondônia.

Vencidas algumas das batalhas que culminaram no artigo 231 da Constituição —com a ajuda do antigo coronel Jarbas Passarinho, ex-ministro da ditadura militar—, a luta indígena ganhou momento. Em 1988, surge uma nova organização na esfera do Cedi, desta vez em Brasília: o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), com Krenak, Marcos Terena, Paiakan, Manuela, Carlos Frederico Marés, Márcio Santilli (estes dois futuros presidentes da Funai), André Villas-Bôas e José Carlos Libânio.

No mesmo ano, o etnobiólogo norte-americano Darrell Posey foi processado com base no Estatuto do Estrangeiro por levar os líderes Paiakan e Kube-I aos EUA. O líder seringueiro Chico Mendes foi assassinado em dezembro, atraindo mais atenção para a Amazônia. Paiakan pediu na Europa suspensão de meio bilhão de dólares que o Banco Mundial carrearia para o setor elétrico no Brasil.

Em fevereiro de 1989, Beto se empenhou com Márcio e André na organização do Encontro das Nações Indígenas do Xingu convocado por Paiakan. Compareceram o roqueiro Sting, Anita Roddick, dona da Body Shop, a atriz Lucélia Santos e os deputados Fabio Feldmann, Benedita da Silva, Haroldo Lima e Fernando Gabeira. Pelo menos 60 órgãos de imprensa estrangeira se deslocaram até Altamira (PA).

O encontro tinha por mote central protestar contra a construção das hidrelétricas Kararaô e Babaquara no rio Xingu. Uma fotografia feita ali estampou a capa do Jornal do Brasil e correu o mundo: um facão encostado pela índia Tuíra na bochecha de José Muniz Lopes, representante da empresa Eletronorte. Repaginado como Belo Monte, o represamento do Xingu terminaria sendo efetivado nos governos petistas de Lula e Dilma.

"Altamira foi um primeiro ensaio de articulação socioambiental", avalia Beto em suas memórias. "Indígenas, ativistas dos direitos humanos e ambientalistas se aproximaram, superando preconceitos. A experiência comum seria replicada, mais tarde, no Fórum Global das ONGs da Eco-92. Os dois eventos cozinharam um caldo de cultura que ferveria até consolidar um dos alicerces da fundação do Instituto Socioambiental [ISA], em 1994."

O antropólogo-ambientalista, entretanto, não acompanharia pessoalmente a maior reunião multilateral já realizada em favor da saúde do planeta. A sua própria lhe pregou uma peça: logo após retornar dos EUA, onde recebeu o Prêmio Goldman e teve um encontro como o então presidente George Bush (pai), caiu doente com uma amebíase que o internou no hospital Oswaldo Cruz, quando emagreceu 14 quilos.

Após o assassinato de Chico Mendes, outra desgraça amazônica obteve destaque em 1993: o massacre de dezenas de yanomamis em Haximu, na fronteira com a Venezuela. Foi resultado direto da invasão da área por garimpeiros, dezenas de milhares deles, conforme descrito no PIBão pelo antropólogo Bruce Albert.

Albert é o interlocutor nas gravações com o ianomâmi Davi Kopenawa que resultariam no best-seller "A Queda do Céu", no qual o xamã alerta que os brancos estão destruindo o planeta com o aquecimento global. Em 1992, às vésperas da Cúpula da Terra, o então presidente Fernando Collor havia homologado a Terra Indígena Yanomami, com 94 mil km2, maior que Portugal, mas os garimpeiros ainda andam por lá.

A confluência das pautas indigenista e ambiental levou à fundação do ISA como uma das quatro instituições em que se desmembrara o Cedi. As outras foram Ação Educativa, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço e Núcleo de Estudos Trabalho e Sociedade.

Um dos lemas da organização viria a ser: "Socioambiental se escreve junto". Era um jogo de palavras que recorria à omissão do hífen para indicar a interpenetração de movimentos militantes que costumavam andar às turras: conservacionistas que não se preocupavam com populações tradicionais e indigenistas que só tinham olhos para a preservação de línguas e rituais.

Entre os 33 sócios fundadores estavam os antropólogos do Cedi e figuras de proa da organização SOS Mata Atlântica, como Mário Mantovani e João Paulo Capobianco (atual secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente/MMA, cargo que já ocupara na primeira encarnação de Marina Silva como ministra). O ISA cresceria como uma fábrica hiperativa de estudos e dados sobre temas indígenas e ambientais, alimentando militantes, políticos e jornalistas.

Os índios panarás, que em 1975 haviam sido deslocados compulsoriamente de suas terras na região para o Parque Indígena do Xingu, manifestaram a André Villas-Bôas, em 1991, o desejo de retomar seu antigo território. Para embasar as ações que esse povo impetraria com o NDI contra a União, em 1994, o ISA fez um levantamento por satélite dos trechos de floresta ainda não derrubados pelos brancos.

Os panarás terminaram indenizados pelo Estado brasileiro, uma jurisprudência inédita, e tiveram 4.900 km2 de terras devolvidas em 1996, nos municípios de Guarantã do Norte (MT) e Altamira (PA). Em março de 1997, com apoio do ISA, eles se mudaram para a nova aldeia Nacypotire, no rio Iriri. A saga deu origem ao livro "A Volta dos Índios Gigantes", com textos dos jornalistas Lúcio Flávio Pinto, Raimundo Pinto e Ricardo Arnt, mais fotos de Pedro Martinelli, outro companheiro de longa data.

Daí por diante, a sigla ISA se converteu em sinônimo de muitos sucessos (e uns poucos fracassos). Entre os êxitos, contra todas as probabilidades, figura o estabelecimento de sistemas e rotas comerciais para fazer a cestaria baniwa e a pimenta jiquitaia, da longínqua região da Cabeça do Cachorro, chegarem aos balcões das melhores lojas do Sudeste.

O programa no Alto Rio Negro, aliás, foi a obra dileta de Beto como antropólogo militante. O ISA transformou São Gabriel da Cachoeira (AM) em dínamo de atividades visitado por indígenas, pesquisadores, militares e celebridades como Milton Nascimento, Gilberto Gil, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Bela Gil, Alex Atala e Sebastião Salgado.

A sede do instituto na cidade, o Curupirão, hospeda legiões de interessados nas dezenas de projetos de educação, piscicultura, agroflorestas e ecoturismo. Foi dali que parti para algumas coberturas jornalísticas sugeridas por Beto.

Entre as mais memoráveis: "A exceção e a regra" (2010), sobre ensino médio indígena entre os tuyukas do Alto Rio Tiquié, com o antropólogo Aloisio Cabalzar, e "Yaripo, a montanha sagrada dos ianomâmis" (2017), sobre programa de renda em que membros da etnia levam turistas até o pico da Neblina (2.995 m), o mais alto do Brasil, com Marcos Wesley Oliveira.

Muitas outras matérias vieram antes e depois: "Evento discute biodiversidade amazônica" (1999), sobre áreas prioritárias para preservação; "Plano ameaça 180 mil km2 de florestas" (2000), sobre o desenvolvimentismo de FHC; "Livro põe antropólogos em pé de guerra" (2000), sobre controvérsia envolvendo a obra de Napoleon Chagnon; "Sementes da concórdia" (2009), a respeito da Rede de Sementes do Xingu; "Ianomâmis ensinam quais cogumelos podem ser comidos sem risco" (2016).

Houve distanciamentos e divergências, por certo, atritos normais entre jornalistas e militantes movidos por objetivos nem sempre conciliáveis. Foi assim, por exemplo, com o esforço de manter equilíbrio entre defensores e adversários de obras de infraestrutura em regiões sensíveis, como a rodovia BR-163 e Belo Monte. Nada, porém, capaz de abalar a confiança na "fortaleza civil" comandada por Beto.

O antropólogo, afinal, é de uma honestidade ímpar, pessoal e intelectualmente. Ao narrar no livro um atrito com FHC sobre norma que admitia a terceiros contestar demarcações de terras indígenas, ele afirma sem meias palavras: "Na verdade, estávamos errados. Exageramos. O decreto número 1.775 não reduziu nenhuma terra indígena e acabou dando consistência às demarcações posteriores".

A mesma honestidade não mede elogios a alguns poucos militares de boa vontade com que cruzou na Amazônia. Nem deixa de lamentar os retrocessos ambientais que começaram com as autorizações para hidrelétricas no rio Madeira (2007) e a saída de Marina Silva do MMA (2008), nos primeiros governos Lula, e culminaram com o licenciamento de Belo Monte (2010) e a aprovação de um novo Código Florestal (2011) que anistiou 470 mil km2 de florestas derrubadas irregularmente. Para nada dizer da hecatombe advinda com o ecocida Jair Bolsonaro, claro.

Beto, em que pesem os revezes, nunca abandonou o otimismo. Em 2007, capitaneou uma convocatória para estender os mapas temáticos do Cedi/ISA para incluir todos os outros sete países com floresta amazônica (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Venezuela e Suriname).

Tinha tudo para não dar certo, mas Beto se provou, mais uma vez, um articulador paciente, solidário, determinado e firme. "Mapas exprimem poder", foi a mensagem que levou. Pôs de pé, com recursos iniciais da fundação norueguesa Rainforest, a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg). Cinco anos após a convocação, saiu o "Atlas Amazônia sob Pressão".

É mais um monumento ao estilo do enciclopédico PIBão, erguido por um militante discreto, que segue a sabedoria indígena amazônica quando esta diz que quem aparece demais atrai feitiçaria. Hoje o ISA, uma obra coletiva, como gosta de dizer, tem duas centenas de funcionários em oito escritórios pelo país, mil afiliados e 450 mil seguidores em redes sociais. E uma vida inteira para se admirar.

Uma Enciclopédia nos Trópicos: Memórias de um Socioambientalista

  • Preço R$ 109,90 (328 págs.); 44,90 (ebook)
  • Autoria Beto Ricardo e Ricardo Arnt
  • Editora Zahar
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