Em romance, professor e jovem búlgaro se envolvem após encontro no banheiro

'O Que Te Pertence', estreia de Garth Greenwell como romancista, sai pela Todavia em março

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Garth Greenwell

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de “O Que Te Pertence”, romance de estreia do autor de 40 anos. O livro, que será lançado pela Todavia em março, conta a história de um professor americano passa a se relacionar com um jovem após conhecê-lo em um banheiro na Bulgária.

torneira sobre azulejos
Ilustração - David Magila

O fato de o meu primeiro encontro com Mitko B. ter desembocado numa traição, ainda que pequena, deveria ter me servido de alerta na época, o que por sua vez teria feito meu desejo por ele diminuir, se não desaparecer por completo. Mas um alerta, em locais como os banheiros do Palácio Nacional da Cultura, onde nos conhecemos, é como algum elemento adjacente ao ar, ubíquo e inescapável, tanto que se torna parte daqueles que o habitam, e portanto componente essencial do desejo que nos atrai para lá. Mesmo enquanto eu descia as escadas ouvia sua voz, que, como o restante dele, era grande demais para aquelas dependências subterrâneas, transbordando delas como se ascendesse de volta para dentro da tarde luminosa que, apesar de estarmos em meados de outubro, não tinha nada de outonal; as uvas que pendiam maduras das parreiras cidade afora rebentavam ainda mornas na boca da gente. Fiquei surpreso ao ouvir alguém falando tão livremente num lugar onde, de acordo com um código tácito, as vozes não costumavam ultrapassar um sussurro. Ao pé da escada paguei meus cinquenta stotínki para uma mulher idosa que me encarou do seu guichê com uma expressão ilegível enquanto recolhia as moedas; com a outra mão ela apertava o xale para afastar o frio que ali era constante, em qualquer estação. Só quando me aproximei do final do corredor ouvi uma segunda voz, não tão alta quanto a primeira, mas respondendo num murmúrio abafado. As vozes vinham do segundo dos três compartimentos do banheiro, onde podiam ser de homens que lavavam as mãos, se o ruído de água as acompanhasse. Fiz uma pausa no ambiente externo, observando-me nos espelhos que cobriam a parede enquanto escutava a conversa deles, embora não conseguisse entender uma palavra. Só havia uma razão para homens estarem postados ali: os banheiros do ndk (como o Palácio é chamado) são bem escondidos e têm tal reputação que não são usados praticamente para mais nada; e, no entanto, quando entrei no recinto, essa explicação pareceu contradizer a atitude do homem que atraiu minha atenção, que era cordial e franca, inteiramente pública naquele lugar de intensas intimidades.

Ele era alto, magro, mas de ombros largos, com o corte de cabelo militar muito popular entre certos rapazes em Sófia, que simulam um estilo hipermásculo e um certo ar de criminalidade. Mal notei o homem com quem ele estava, que era mais baixo, submisso, com cabelo louro descolorido e uma jaqueta jeans de cujos bolsos nunca tirava as mãos. Foi o homem mais alto que se virou para mim, ao que parece com interesse amistoso, isento de agressividade ou temor, e, embora tomado de surpresa, eu me vi sorrindo em resposta. Ele me cumprimentou com um elaborado jorro de palavras, diante do qual eu só pude abanar a cabeça, aturdido, enquanto apertava a manopla que ele me estendeu, oferecendo como desculpa e defesa as poucas frases que eu havia praticado até o entorpecimento. Seu sorriso se alargou ainda mais quando ele percebeu que eu era um estrangeiro, revelando um dente frontal lascado, cujo gume irregular (eu descobriria) ele esfregava obsessivamente com o indicador em momentos de preocupação. Mesmo a um braço de distância dava para sentir o cheiro do álcool que emanava não tanto do seu hálito como das suas roupas e do cabelo; isso explicava sua liberdade num lugar que, mesmo com toda a sua licenciosidade, era limitado por certa inibição, e explicava também a característica natureza inocente do seu olhar, que era intenso, mas não ameaçador. Ele falou de novo, tombando a cabeça para um lado, e numa mistura de búlgaro, inglês e alemão ficou estabelecido que eu era americano, que estava naquela cidade havia algumas semanas e ficaria pelo menos um ano, que era professor no American College, que meu nome era mais ou menos impronunciável em seu idioma. 


Garth Greenwell é poeta, escritor e crítico norte-americano.

Tradução de José Geraldo Couto, crítico de cinema, jornalista e tradutor.

Ilustração de David Magila, artista plástico.

 

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