Romance traça narrativas paralelas num Brasil sob regime totalitário

'Porca', de Alexandre Marques Rodrigues, será lançado neste mês pela editora Record

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Alexandre Marques Rodrigues

[SOBRE O TEXTO] Os trechos nesta página são parte do romance “Porca”, no qual duas narrativas paralelas contam a história de um funcionário infeliz de uma livraria e do suposto escritor do livro, que se prepara para encontrar uma mulher casada. O pano de fundo da obra, lançada neste mês pela editora Record, é a ascensão de um regime totalitário no Brasil.

mãos vermelhas e azuis se entrelaçam
Ilustração - Aline Lemos

Se trabalhasse de garçom em um restaurante, comeria dos pratos servidos aos clientes, antes de entregar os pedidos nas mesas; me alimentaria o dia todo, do começo ao fim do expediente, beliscaria pequenas porções de tudo o que pedissem. Se desse plantões em hospitais, nas UTIs principalmente, apalparia os peitos das pacientes em coma, faria uso dos medicamentos mais interessantes, das substâncias que não me deixam comprar nas farmácias, às vezes mesmo quando consigo uma receita falsa. E, se fosse mecânico, passearia com os carros depois que os consertasse, antes do proprietário voltar, ingênuo e satisfeito, para me indenizar pelo tempo perdido; andaria pela cidade inteira, com o braço para fora da janela, como se fosse rico. Pois é assim mesmo, é desse jeito que todo mundo faz.

Sou mal pago, trabalho em condições que depredam a imagem que tenho de mim, diariamente me exploram e acham, ainda, que fazem isso com razão, ou que me explorar é um favor que me prestam. É claro que eu me vingaria, que me vingo, qualquer que seja meu emprego; é claro que vou conseguir algumas vantagens além daquelas que constam, duvidosas demais, na nojeira das leis trabalhistas.

Assim, se sou empregado de uma livraria, não há qualquer dúvida: não preciso comprar livros. À noite, escondo o exemplar que me interessou debaixo da camisa, ou dentro da lixeira que, depois das portas se fecharem, do último cliente sair, sou eu quem esvazia; escondo o exemplar que me interessou, o levo para ler em casa e o devolvo, na manhã seguinte, desvirginado, mas ainda com a aparência de donzela, puro e imaculado. Quem comprar depois o livro não vai perceber que ele já passou por outras mãos, as minhas mãos, no caso, que outros olhos já se esfregaram nele.

E veio ainda, nessa leva de livros, entre as tantas caixas que chegaram ontem porque na sexta era feriado, além do Nietzsche, do Onetti, do Dickens, do Balzac, do Kertész: veio ainda uma edição nova, em três volumes, encadernada em capa dura, do “Guerra e Paz”. Floreando, ao estilo do século XIX, eu poderia dizer: que minhas mãos tremeram quando peguei os livros, que o ar me faltou dentro do peito, que minha visão ficou turva, que precisei me sentar, no chão mesmo, ao lado das caixas de papelão, para não desmaiar; sem floreio algum, diria apenas: Puta merda.

Tenho que levar a edição nova, o Tolstoi em três volumes, embora para casa; soube disso instantaneamente, assim que a vi. Mas o “Guerra e Paz” não é para uma noite apenas, desses livros que trago de volta, deflorados, na manhã seguinte; o Tolstoi, nessa edição especial em capa dura, é para amarrar com os laços do sagrado matrimônio: preciso garantir a posse ciumenta, exclusiva e definitiva dele.

 

Mesmo que seja cedo, não recuo, não subo, não pego de novo o elevador, as chaves, não volto para meu apartamento. Saio, ganho a rua, acendo um cigarro e vou atrás das lojas do Moinho.

A ideia não é ir até as lojas do Moinho comprar mais um livro, porque, eu sei, livros são quase que exclusivamente os únicos presentes que dou, que já dei a Ela; o que procuro hoje é uma gravação, qualquer gravação minimamente bem-executada dos três concertos para piano do Bartók. Já tem algum tempo que quero mostrar esses concertos a Ela, e então, essa noite, enquanto não conseguia dormir, pensei que quando Ela chegar, amanhã, com sua mala, o sorriso enganchado no rosto, que será um bom momento: não para fazer a música brotar do aparelho de som, como uma trilha sonora, mas sim para dar a Ela sua própria gravação do Bartók, e que o presente marcará, como uma espécie de monumento íntimo, que os concertos marcarão a lembrança de sua chegada em meu apartamento. 


Alexandre Marques Rodrigues, escritor paulista, é autor do romance “Entropias” e de “Parafilias” (Record), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Jabuti.

Ilustração de Aline Lemos, artista visual e cartunista que lançou em 2018 seu primeiro livro, “Artistas Brasileiras” (Miguilim).

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