Descrição de chapéu
Carlos Augusto Calil

Há 100 anos modernista Blaise Cendrars chegava ao Brasil

Há cem anos, o escritor desembarcava no país para visita acompanhada de intelectuais modernistas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Carlos Augusto Calil

Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, é ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo (2005-12); presidente do Conselho de Administração da Sociedade Amigos da Cinemateca Brasileira

[RESUMO] A visita ao Brasil do escritor, poeta e artista de vanguarda franco-suíço Blaise Cendrars, em 5 de fevereiro de 1924, completa cem anos. A temporada no país, ciceroneada por modernistas, resultou em experiências que Cendrars mais tarde transpôs em sua obra literária.

Recepção do poeta Blaise Cendrars no Brasil, em 5 fev.1924. (da esq. para dir.) Paulo da Silveira, Américo Facó, Ronald de Carvalho, Blaise Cendrars (de paletó aberto e chapéu inclinado), Sérgio Buarque de Holanda, Graça Aranha, Prudente de Morais e Guilherme de Almeida - Divulgação

Há exatamente cem anos, em 5 de fevereiro de 1924, a bordo do navio "Le Formose", o poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), membro destacado da vanguarda francesa, chegava ao Brasil, a convite de Oswald de Andrade e Paulo Prado. Este havia solicitado a Graça Aranha que recepcionasse o visitante durante a curta permanência no Rio de Janeiro.

O acadêmico arregimentou um grupo de amigos e discípulos para o cais. Entre jovens modernistas e jornalistas compareceram Américo Facó, Paulo da Silveira, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Prudente de Morais e Sérgio Buarque de Holanda.

Guilherme de Almeida não perde a ocasião e oferece incontinenti ao visitante um exemplar de seu livro "Natalika", com a dedicatória:

"A Blaise Cendrars —premier geste de bienvenue qu’adresse au grand Poète ce grand pays. G. A." [A Blaise Cendrars —primeiro gesto de boas-vindas que oferece ao grande Poeta este grande país].

Cendrars não se sensibilizou particularmente com o gesto, pois jamais abriu o livro, afinal não tinha vindo ao Brasil para fazer turismo literário e sim para embarcar numa "generosa aventura". Sob a marca do mal-entendido, tinha início "A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars", título do ensaio que Alexandre Eulálio consagraria ao escritor em 1969, transformado em "livro de figuras" em 1978.

A foto do grupo que o leitor contempla foi comentada pelo poeta 30 anos depois:

"Rio. Vieram todos ao navio [...] estou no meio deles, e dá vontade de rir do nosso jeito tão fora de moda (tenho a foto diante dos olhos; todos seguram uma bengala como seus antepassados antropófagos uma clava)..."

A imprecisão do relato se presta ao processo de mitificação da experiência brasileira, que se desdobrará nos inúmeros relatos fantasiosos que o poeta dedicou ao Brasil. Fazem parte da sua Utopialand, um Brasil maravilhoso que ele adotou como segunda pátria espiritual.

Após um passeio panorâmico pela orla da cidade, que chegou até a avenida Niemeyer, um almoço na Cabaça Grande em pleno centro transcorreu na maior cordialidade. Cendrars surpreendeu os brasileiros ao pedir pinga, que ele havia provado nos almoços brasileiros que a pintora Tarsila do Amaral promovia em seu ateliê de Paris, durante o ano anterior. Ele incitava o grupo a acompanhá-lo "à la russe", entornando o copo de uma só vez. Sérgio Buarque, o mais jovem do grupo, tomou um porre em consequência.

Graça Aranha havia alertado a imprensa, e um repórter e um fotógrafo de "A Noite" apareceram para o registro. A foto e a notícia da visita estampam a edição vespertina no mesmo dia.

Fotografia do poeta Blaise Cendrars no jornal 'A Noite': “Um representante da nova poesia francesa visita o Brasil. Blaise Cendrars, de passagem para S. Paulo, esteve no Rio algumas horas. ‘A Noite’, Rio de Janeiro, terça-feira, 5 de fevereiro de 1924” - Divulgação

Cendrars transformou a experiência num poema lírico de circunstância, que publicou em "Feuilles de Route" [Diário de bordo], primeiro livro que dedicou ao Brasil.

Banquete

Uma hora de táxi ao longo da praia
Velocidade buzina apresentações risos jovens Paris Rio
[Brasil França entrevistas apresentações risos
Vamos à Gruta da Imprensa
Depois voltamos para almoçar na cidade
Ainda nem serviram os pratos e os jornais já falam
[de mim e publicam a foto de agora há pouco
Boa cozinha da terra vinhos portugueses e pinga
Às duas da tarde em ponto estou a bordo
Um jovem poeta simpático vomita no convés
[eu o levo de volta para terra onde
[seu companheiro vomita por sua vez
Os outros não puderam vir atrás
Subo para mergulhar na piscina enquanto o Formose zarpa
Viva a água

"Diário de bordo", tradução de Samuel Titan Jr.

No dia seguinte, Cendrars aportava em Santos, onde o esperavam Sérgio Milliet, Couto de Barros, Luís Aranha e Rubens Borba de Morais. Porém o desembarque foi atrasado por conta da ação das autoridades de imigração que, ao constatarem que o ilustre visitante não tinha um braço (havia perdido o braço direito no front da Primeira Guerra), impediram o desembarque. A legislação brasileira proibia a imigração de mutilados. Esclarecido o equívoco, o grupo seguiu a São Paulo. No trajeto, diante da exuberância da mata atlântica, o estrangeiro viu uma floresta com "cara de índio". Na Estação da Luz, reconheceu traços da Charing Cross, de Londres.

Em São Paulo, encontra os amigos que havia feito em Paris, no ano anterior —Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Paulo Prado, Sérgio Milliet, dona Olívia Guedes Penteado—, em cuja residência, num jantar literário, é apresentado à sociedade local.

Para financiar a estada do poeta entre nós, os amigos organizam conferências, com ingressos caros, uma maneira discreta de angariar renda ao visitante. A primeira palestra, sobre "A moderna poesia francesa", ocorreu no Conservatório Dramático e Musical. Cendrars surpreendeu os assistentes, mesmo os mais cultos, com análises de poemas de Max Jacob, Arthur Cravan, Philippe Soupault, Picabia, ao lado de autores conhecidos como Lautréamont, Rimbaud, Aragon, Cocteau.

Nos primeiros dias de março, Oswald leva o amigo a conhecer o Carnaval carioca. Acompanham os poetas Tarsila e dona Olívia. A festa surte grande efeito nos turistas. O relato de dona Olívia dá testemunho da descoberta da beleza singela sob o manto da pobreza.

"Fomos a Cascadura, Madureira, Jacarepaguá [...] Passando ao lado do Morro da Favela paramos algum tempo. Olhei quase com ternura aquele espetáculo único das negras embaianadas de cores vistosas, que subiam e desciam os degraus toscos no morro. Aqueles casebres miseráveis tomavam um aspecto de festa e tudo parecia tomar parte do Carnaval."

Tarsila recolhe os traços redondos e as cores puras para a tela "Carnaval em Madureira". Cendrars irá dedicar mais de um texto ao Carnaval do Rio, em que afirmava que era impossível resistir ao apelo dos blocos foliões, que arrastavam as pessoas nos cordões. Oswald cristaliza algumas das ideias mais fecundas do "Manifesto da Poesia Pau Brasil", que lançaria logo em seguida, em 18 de março, no jornal carioca "Correio da Manhã".

"A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau Brasil."

A presença de Cendrars no "Manifesto" é emblemática. Numa citação visivelmente traduzida do francês, ele aponta para a contribuição do negro à cultura brasileira.

"Uma sugestão de Blaise Cendrars: Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino."

A segunda viagem do grupo leva-o a Minas Gerais, em abril, durante a Semana Santa. Reforçada pela presença de Mário de Andrade, René Thiollier, Gofredo da Silva Teles e de Nonê, o filho ainda menino de Oswald, a Caravana Modernista visita São João del Rei, Tiradentes, Mariana, Ouro Preto e, via Divinópolis, Sabará e Belo Horizonte.

A procissão do Senhor Morto, na noite da Sexta-feira da Paixão em Tiradentes, é o ponto alto da viagem. Mário, Oswald e Blaise ficam marcados pelo espetáculo religioso.

No sábado de Aleluia, ainda em Tiradentes, quando o grupo passava pela cadeia local, um prisioneiro que estava atrás da janela gradeada chama a atenção dos passantes, pedindo intercessão junto às autoridades para aliviar a sua pena.

Cendrars pergunta-lhe que crime o havia condenado e ele confidencia que, com seu punhal, havia matado o rival, arrancado seu coração e comido. Em estado de exaltação, o poeta francês exclama "Quelle merveille" [Que maravilha!], expressão que repetia com frequência, para irritação de Mário de Andrade.

Este episódio, devidamente transfigurado pela imaginação exuberante do escritor francês, se tornará um de seus primeiros textos "brasileiros", que recebeu o título de "Elogio da Vida Perigosa" (1926).

Na visita à igreja matriz de Tiradentes, o grupo se depara com uma situação desoladora: há pouco tinha ocorrido ali um assalto, em que desaparecera toda a prataria. Muito abalada pelo abandono das igrejas de Minas Gerais, D. Olívia resolve constituir uma Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil.

Cendrars ficou incumbido da redação dos estatutos, que previa a proteção aos bens móveis e imóveis, por meio de inventário, classificação, controle da restauração, criação de museus, divulgação do acervo, impedimento de retirada das obras de arte do país etc... etc..., segundo modelos anglo-americanos. Em diversas oportunidades, ele lamentará o abandono a que estava relegado o patrimônio histórico e cultural brasileiro.

Em Belo Horizonte, Carlos Drummond de Andrade convocara os jovens modernistas de Minas a recepcionar a caravana no Grande Hotel. Compareceram Emílio Moura, Pedro Nava e Martins de Almeida. Ao constatarem a denúncia dos paulistas sobre o abandono dos tesouros coloniais, os mineiros não escondem o constrangimento.

Em excursão a Lagoa Santa, Daniel de Carvalho, secretário da Agricultura mineiro, oferece aos visitantes, em nome do governo do Estado, terrenos nas proximidades desse local: as "terras brasileiras" de Cendrars.

Na última etapa da viagem, em Congonhas do Campo, o Santuário do Bom Jesus com as imagens policromadas do Aleijadinho, dispostas nos passos da Paixão de Cristo, provoca esmagadora impressão no grupo.

Cendrars então proclama que Aleijadinho era o maior escultor do século 18. E desde então planeja escrever um livro sobre a história do Santuário, que nunca concluiu. Essa viagem ao coração do país, singelo, arcaico e colonial, representou para Oswald, Tarsila e Cendrars a "ocasião da descoberta do Brasil".

Em maio, Cendrars dá uma conferência-exposição no Conservatório sobre a pintura contemporânea. Ao evento compareceu o mundo oficial de São Paulo. Originais de telas de Léger, Delaunay, Gleizes, Severini, existentes nas coleções de Dona Olívia, Paulo Prado e Tarsila, foram exibidos e "explicados" ao público presente. Obras de Lasar Segall e Tarsila, que pintara "Estrada de Ferro Central do Brasil" especialmente para a ocasião, juntam-se às estrangeiras.

Em junho, Cendrars conclui o projeto de um "grande filme de propaganda do Brasil". Na verdade, este era o seu maior interesse, com que esperava "fazer a América".

Sabedor de que Cendrars havia trocado a literatura pelo cinema após trabalhar com Abel Gance em suas super produções, Oswald havia convencido o amigo novo a vir ao Brasil dirigir um filme, do qual ele mesmo seria o roteirista, baseado no livro "Capitania de São Paulo", de Washington Luís.

Apesar de muito bem formulado, em surpreendente sintonia com as regras internacionais da indústria cinematográfica, até então desconhecidas no Brasil, o projeto não avançou. Cendrars mais tarde transformaria o episódio frustrado em literatura no saboroso texto "Etc. Etc. Um filme 100% brasileiro". O leitor familiarizado com a história do cinema brasileiro já se apercebeu de que se tratava de uma grande cavação.

Em 5 de julho, a Revolução de Isidoro Dias Lopes surpreende Cendrars e Oswald na redação do "Correio Paulistano", órgão do governo.

Com São Paulo ocupada pelos revoltosos e posta sob assédio pelas tropas federais que a bombardeavam com canhões, Cendrars, experiente veterano da Primeira Grande Guerra, localizava pelo estrondo do obus o alvo atingido. Face a uma ameaça real, o casal Paulo Prado refugia-se na Fazenda Santa Veridiana, em Santa Cruz das Palmeiras, onde abriga o seu hóspede inquieto.

O primeiro tempo brasileiro se esgota traumaticamente e Cendrars embarca de volta à França em agosto. Retornaria duas vezes ao Brasil: em 1926 e em 1927/1928.

Em dezembro é publicado "Feuilles de Route" [Diário de Viagem], o primeiro livro brasileiro de Cendrars, que traz na capa o desenho de "A negra", de Tarsila. A dedicatória a Oswald: "Je certifie que cet exemplaire est le premier sorti des presses et qu’Oswald est le premier de mes bons amis Blaise Tremblay 13 déc 1924" [Certifico que este exemplar é o primeiro saído da gráfica e que Oswald é o primeiro dos meus bons amigos] atesta a intimidade, que ultrapassa as relações pessoais com Cendrars, avalista discreto do movimento Pau Brasil da pintura e da poesia.

No final do ano, Tarsila recebe telegrama, redigido em português, no seu ateliê do bulevar Berthier: "SAUDADES DA MINHA TERRA BLAISE".

A impregnação brasileira da obra de Cendrars, que se manterá viva até o fim da vida, deve muito à relação com o casal Tarsiwald e com Paulo Prado, mecenas e amigo fiel.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.