Capital norte-coreana preserva experimento social do século 20

Arquitetura de Pyongyang facilita a vigilância e afirma o poder do Estado

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horizonte de prédios coloridos vistos de cima

Pyongyang, capital da Coreia do Norte Tuca Vieira

Tuca Vieira

[RESUMO] Nos únicos lugares que turistas são autorizados a visitar em Pyongyang, capital da Coreia do Norte, surge uma cidade que parece cenográfica, planejada e construída para facilitar a vigilância e afirmar o poder do Estado.

No meio da cidade há uma grande torre em que se pode subir para apreciar a vista de 360 graus. Do alto, o panorama é espetacular. O rio Taedong divide a cidade ao meio, com suas pontes e ilhas fluviais. Há blocos residenciais multicoloridos, prédios cilíndricos, torres futuristas, instalações esportivas e quase todos os monumentos e edifícios importantes.

Do outro lado do rio, reconheço a gigantesca pirâmide envidraçada do hotel Ryugyong e o conjunto arquitetônico da praça Kim Il-sung, centro cívico e simbólico da cidade, onde acontecem os impressionantes desfiles militares. A praça é atravessada por um dos eixos monumentais que cortam a cidade, com o Grande Palácio de Estudos do Povo num extremo e a Torre Juche, no outro. 

Estou em Pyongyang, capital da Coreia do Norte. Participo de uma excursão autorizada pelo governo, única maneira viável de um viajante comum visitar o país. O roteiro é preestabelecido e os guias, que nos acompanham o tempo todo, mostram apenas aquilo que julgam ser os aspectos positivos da cidade.

Visitei apenas áreas centrais da capital. Não pude conversar com os cidadãos comuns que encontrei, não pude andar sozinho, não pude visitar os subúrbios. Portanto, um aviso é necessário: este texto, como quase tudo o que se escreve a respeito desse país distante, isolado e misterioso, será por natureza incompleto e especulativo. 

Mais cedo, o ônibus havia nos deixado em frente ao Grande Teatro para uma caminhada pela avenida Sungri (que significa “vitória”, em referência ao fim da ocupação japonesa em 1945), a principal via da cidade. A região central é menos movimentada do que se espera de uma capital de 3 milhões de habitantes. A lentidão nos movimentos, a sobriedade das roupas e o silêncio de fundo me fazem pensar que estou dentro de um filme oriental dos anos 1950.

No entanto, se não é uma metrópole vibrante, tampouco é a cidade modorrenta habitada por zumbis errantes que algumas imagens sugerem. Há bastante gente na rua, mas poucos carros. Há bicicletas, grupos de crianças em uniforme de escola e funcionários montando um palco para a festa de Ano-Novo.

Os ônibus estão lotados, e o transporte público parece bastante decente. Há restaurantes, cabeleireiros, bondes elétricos, lojas de departamento e muitos quiosques. As pessoas não parecem ter muita pressa —surpreendentemente para os dias de hoje, ninguém está com os olhos no celular.

Como fotógrafo, sinto uma enorme atração por tudo o que vejo. Não há publicidade nem muita sinalização. Não há muita coisa que distraia o olhar para além da própria cidade. Não há muitos carros bloqueando a vista dos edifícios, alguns deles muito interessantes.

A cidade está reduzida a seus elementos físicos básicos: edifícios, calçada, asfalto e mobiliário urbano essencial. Tudo num espaço muito silencioso, limpo e ordenado. Parece estar nua, desprovida de tudo o que é supérfluo, iluminada pelo sol de inverno.

O elemento perturbador nessa ordem aparente são as estátuas e as imagens dos líderes, instaladas nos cruzamentos e no alto dos edifícios públicos. Os dois rostos sorridentes são retratados em cores vibrantes, levemente artificiais, como numa fotopintura do Nordeste brasileiro.

De noite, quando a cidade é muito escura e silenciosa, esses grandes retratos são os únicos elementos bem iluminados, o que cria uma atmosfera densa. O “presidente eterno” Kim Il-sung (1912-1994) e seu filho Kim Jong-il (1941-2011) parecem nos observar por toda parte, como dois big brothers orwellianos.

Assim, aos poucos, os primeiros indícios de normalidade vão dando lugar a um grande estranhamento. É difícil separar o que é real do que é falso na cidade. Como muito do que nos mostram tem apenas o objetivo de impressionar, penso se não estou numa versão oriental do “Show de Truman” (1998), filme em que o personagem de Jim Carrey vive num grande estúdio, sem se dar conta disso.

Será que estou numa cidade cenográfica e todas as pessoas são figurantes desse show? Será que o Grande Teatro é, na verdade, apenas uma fachada de isopor? Será que tudo isso existe apenas para iludir os visitantes e será desmontado assim que formos embora?

Pyongyang é moderna e monumental. Faz parte de uma linhagem de capitais planejadas —São Petersburgo, Washington, Minsk e Brasília—, construídas para representar um discurso político. Foi destruída no início dos anos 1950, durante a Guerra da Coreia, e reconstruída em seguida. Os bombardeios norte-americanos deixaram a tábula rasa que serviu de oportunidade para o regime vitorioso construir uma capital idealizada, que pode ser lida como um texto ideológico em forma de cidade.

A capital dessa ditadura comunista é a materialização de um experimento social preservado até hoje como relíquia do século 20. Seja o “último bastião da Guerra Fria”, “gabinete de curiosidades arquitetônicas”, “museu da arquitetura socialista a céu aberto” ou “parque temático da dinastia Kim”, Pyongyang é sem dúvida única no mundo.

O plano piloto foi comissionado por Kim Il-sung a uma equipe chefiada por Kim Jung-hee, que havia estudado no Instituto Arquitetônico de Moscou. Ali, o urbanista desenvolveu os fundamentos de uma “cidade socialista” a partir dos princípios de planejamento urbano propostos por Le Corbusier na Carta de Atenas —espécie de manifesto urbanístico elaborado nos anos 1930, que também orientou o plano de Brasília.

Uma vez que a cidade pôde ser desenhada sem impedimentos de propriedade privada nem oposição política, o ideário arquitetônico socialista foi aplicado com rigor. Em consequência, apresenta um grau de perfeição urbana chocante. Largura das ruas e das calçadas, altura dos prédios, transporte público, proporções, perspectivas, zoneamento, fluxos —tudo parece saído diretamente de um manual de urbanismo.

O desenho tem como base uma malha ortogonal irregular. No sentido norte-sul, o rio Taedong divide a cidade ao meio e, paralela a ele, na margem ocidental, a avenida Sungri define o centro da cidade, onde antes se situava a parte antiga. No sentido leste-oeste, além das pontes que passam sobre o rio e se prolongam em direção aos subúrbios, dois grandes eixos monumentais atravessam visualmente o Taedong, conectando simbolicamente os dois lados da capital.

A cidade é de fácil leitura e navegação. Há muitos pontos de referência e grandes estruturas visíveis. As perspectivas calculadas conduzem o olhar para certos pontos de fuga, criando um sistema visual hierárquico que vai do mais simples bloco residencial ao monumento mais vistoso.

No ponto mais nobre da cidade existe sempre um elemento icônico relacionado ao regime político, seja a Torre Juche (o monumento ideológico, que celebra a doutrina da autossuficiência), o Monumento à Fundação do Partido (o monumento político), o Grande Palácio de Estudos do Povo (o monumento cívico), as gigantescas estátuas dos líderes no alto da colina Mansu (o monumento espiritual, principal local de culto à personalidade dos Kims), o Arco do Triunfo (o monumento militar) ou o hotel Ryugyong (o monumento ao progresso).

O plano geral busca uma espécie de “sublime arquitetônico”, uma categoria de beleza muitas vezes alcançada em detrimento do conforto urbano na escala do indivíduo. Com isso, cria um efeito hierático cuja principal finalidade é a afirmação do poder do Estado.

Num país pobre e atrasado, alvo de sanções econômicas, o governo se utiliza da própria cidade para oferecer beleza e um sentimento de orgulho histórico como compensações pelo isolamento geopolítico e pelas privações materiais da população.

Os imensos espaços são como palcos de um teatro para espetáculos grandiosos, de ocupação total impossível no dia a dia. Daí o aspecto vazio de Pyongyang em muitas fotografias, sejam as de turistas ou aquelas de divulgação oficial.

Daí também o potencial avassalador desses espaços quando ocupados por completo, como nos desfiles militares. Apenas nesses momentos cumprem plenamente sua função, criando uma imagem poderosa e exaustivamente explorada pelo regime.

A cidade tem baixa densidade, com muitas áreas verdes e generosas distâncias entre os edifícios (uma das explicações é que, após o trauma da destruição e ainda vivendo sob ameaça, isso minimizaria os efeitos destrutivos de novos bombardeios). Largas vias retas fazem a ligação entre as partes e isolam os bairros em superquadras autossuficientes.

Ao mesmo tempo em que organiza a cidade, esse esquema intensifica a presença do Estado ao facilitar a vigilância e o deslocamento das tropas, desfavorecendo agrupamentos conspiratórios e diluindo os protestos na imensa escala dos espaços. O resultado agrega monumentalidade, funcionalidade e controle.
Instrumentalizada pelo regime, a arquitetura tem papel central na criação da “cidade revolucionária”. Instituições como o Comitê dos Arquitetos e a Academia Paektusan de Arquitetura estão diretamente ligadas às altas esferas de poder.

O próprio Kim Jong-il assinou um curioso tratado sobre o tema. “Sobre Arquitetura” (1991) fala da natureza do ofício, da importância dos aspectos simbólicos, da implantação dos monumentos e da integração com as outras artes, abrangendo noções de equilíbrio, simetria e harmonia. Define o papel do arquiteto, considerado uma “arma prática e teórica” a serviço do sistema.

Segundo o manual, os líderes instruem os arquitetos, que devem construir a cidade a partir da demanda coletiva das massas. No entanto, os líderes atribuem a eles mesmos a tarefa de interpretar essa demanda, num ciclo fechado que exclui a diversidade de opiniões da população.

Uma vez que o cidadão comum tem sua experiência objetiva de cidade controlada pelo excesso de design e pela saturação ideológica, também sua capacidade de interpretação subjetiva é prejudicada. Dessa forma, ao dominar o desenho da cidade, o regime controla também seus próprios significados, condicionados aos valores de triunfo, progresso e resistência.

No fundo, o indivíduo é apenas uma peça substituível do conjunto, uma condição ilustrada nos desfiles militares ou nos chamados Jogos do Povo, eventos levados à perfeição pelos norte-coreanos.

Os Jogos (que acontecem no Estádio Primeiro de Maio, o maior do mundo, com capacidade para 150 mil pessoas) são uma manifestação esportiva e artística em que milhares de jovens se apresentam em coreografias rigidamente sincronizadas ou apenas levantam uma placa colorida para compor um gigantesco mosaico, como um pixel numa fotografia digital.

É uma demonstração exemplar do coletivismo comunista à moda coreana, um modelo que exige dedicação absoluta e coloca o indivíduo sob pressão pois, segundo Kim Jong-il, “um único deslize pode arruinar todo o conjunto”. Tudo isso denota uma grande preocupação com a visualidade da cidade e uma sofisticada consciência do poder da imagem. Podemos especular que serve para esconder os reais problemas do país, que não são poucos.

O regime faz grande esforço para aparentar uma normalidade que não existe. A ironia é que, apesar do atraso histórico, a cidade parece afinada com vários aspectos do mundo contemporâneo, com sua autopromoção, sua fotogenia “instagramável” e sua obsessão pela aparência.

Do alto da torre Juche, vejo também uma série de blocos residenciais coloridos em tons de rosa, laranja, amarelo e verde, pintados recentemente para alegrar o aspecto geral, até então cinzento e triste. 
Como as ruas são meio vazias e tudo parece limpo, organizado e silencioso, tenho a sensação de ver um gigantesco modelo de Pyongyang em escala natural 1:1, ou seja, vendo uma representação da cidade, e não ela mesma.

Logo me lembro da célebre parábola de Jorge Luis Borges que ilustra esse paradoxo. No curto texto “Do Rigor na Ciência”, o mais perfeito dos mapas acaba coincidindo com o território que representa, perdendo sua razão de ser.

Há, porém, uma diferença significativa: na história do escritor argentino o mapa é descartado por sua inutilidade, enquanto Pyongyang parece desaparecer por detrás de sua representação.

É como se a cidade não precisasse mais existir, substituída por mapas, fotografias, imagens televisivas ou por essa belíssima maquete de si mesma. 


Tuca Vieira é fotógrafo e mestre em arquitetura e urbanismo pela USP.

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