Ideias socialistas da Bauhaus serviram ao capitalismo no Brasil

Professora de história da arte retraça percurso das ideias da escola alemã

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O termo Bauhaus funcionou desde a primeira metade do século 20 para tratar da educação de arte e design que rejeita as tradições das belas artes. Mas não há uma Bauhaus síntese de todo o movimento. Ela começa em Weimar, na Alemanha, em 1919, e se muda depois para Dessau e Berlim, onde funciona até 1933.

Após a Segunda Guerra, mestres e ex-alunos desenvolveram outras escolas, no exílio nos EUA e mais tarde na Europa e na América Latina. “Falar Bauhaus no singular e usar o termo como um conjunto coeso de design e princípios de pedagogia é impreciso”, diz a professora-adjunta de história da arte Adele Nelson, do Centro de Estudos Visuais Latino-Americanos do Departamento de Arte e História da Arte da Universidade do Texas (EUA).

Segundo ela, a influência de ideias vindas da Bauhaus nas artes plásticas e no design brasileiros se deu no nível conceitual e formal. Obras e exercícios propostos na escola foram incorporados por artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica em suas práticas. A seguir, trechos da entrevista com Adele Nelson.

 

Que artistas sofreram mais as influências da escola no Brasil? Artistas e designers como Antonio Maluf, Alexandre Wollner, Maurício Nogueira Lima, Almir Mavignier, Mary Vieira e outros estudaram nas autodeclaradas descendentes da Bauhaus, como o IAC (Instituto de Arte Contemporânea) e a HfG (Escola de Ulm) ou, no caso de Wollner, nas duas.

Mas muitos artistas criaram seus primeiros trabalhos focados no estudo de mestres da Bauhaus, notadamente Lygia Clark e Lygia Pape em Josef Albers, bem como Hélio Oiticica em Paul Klee. Numerosas figuras, dos líderes do IAC a artistas como Geraldo de Barros e Abraham Palatnik, também olharam para a pedagogia e a prática de László Moholy-Nagy.

Como a Bauhaus influenciou a vanguarda brasileira dos anos 1950? O trabalho de Lygia Clark revela como a Bauhaus serviu com ponto crucial para a vanguarda pós-guerra no Brasil. Em sua série “Planos em Superfície Modulada”, de 1956–58, ela criou pinturas que assumidamente dialogam com as séries de “Structural Constellation”, que Josef Albers começou no fim dos anos 1940.

A relação entre o trabalho de Clark e o de Albers já foi muito comentada por artistas e críticos, mas os trabalhos mantêm uma tensão ativa entre herança e apropriação. Esse aspecto deu margem à consideração do trabalho de Clark como derivação —como fez o diretor do MoMA Alfred H. Barr, na 4ª Bienal de São Paulo, ao desmerecer os trabalhos dela e de outros chamando-os de “exercícios da Bauhaus.”

Considero que essa obra é vital para entender as técnicas de citação e adaptação desses artistas. Clark criou pares de obras que compartilham composições idênticas, mas diferem em dimensões ou paleta. Ela constrói a operação da repetição em sua prática e marca a repetição como um ato não de imitação, mas de transformação.

Estudos mostram que a arte concreta no Brasil não descende da Bauhaus. Em vez disso, o engajamento com as ideias da Bauhaus, nos níveis institucional e individual, foi fundamental para os artistas brasileiros nos anos 1950 articularem táticas de citação e adaptação e afirmarem concepções radicais não derivativas do modernismo.

Qual o papel do Instituto de Arte Contemporânea, de Pietro Maria Bardi e do arquiteto Jacob Ruchti na divulgação das ideias da Bauhaus no Brasil? O IAC teve uma vida curta, operando entre 1951 e 1953, treinando um número relativamente pequeno de estudantes e foi incapaz de estabelecer relações com a indústria brasileira.

Apesar disso, a escola, seu diretor Pietro Maria Bardi e o professor-chave Jacob Ruchti tiveram papel central na difusão das ideias da Bauhaus no Brasil. Os arquivos da biblioteca do Masp trazem registro apenas do papel de Bardi na organização e estabelecimento da escola, mas alguns alunos, participantes e contemporâneos veem Lina Bo Bardi como colaboradora importante.

Ruchti teve papel central no desenho, na implementação e na promoção do currículo. Ele visitou o Instituto de Design de Chicago, o mais próximo do modelo de currículo do IAC, durante uma estada nos EUA em 1947. Trouxe influências para o curso de composição e materiais da escola paulistana. Ruchti é também autor de um importante texto sobre a escola, que pode ser entendida como uma das primeiras teorizações sobre o design moderno no contexto brasileiro.

Em seus estudos, você diz que tem sido dada importância excessiva à influência do artista suíço Max Bill, que foi professor de Ulm e teve destaque na Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, nessa conexão. A influência de Max Bill sobre os artistas brasileiros tem sido supervalorizada, funcionando como uma explicação resumida para a mudança da prática artística no Brasil nos anos 1950, do realismo para a abstração. Um dos perigos desse exagero do papel de Bill é a ideia correspondente de um fluxo unidirecional entre artistas europeus e artistas brasileiros. Em vez disso, houve, na realidade, entre artistas abstratos na década de 1950, uma troca multivocal de formas e ideias internacionais e nacionais.

Documentos do arquivo do Masp sobre o IAC revelam que, embora Pietro Maria Bardi estivesse atento aos então nascentes planos para a escola de Ulm, ela não foi modelo para o IAC. Na verdade, a escola foi modelada mais de acordo como o Instituto de Design em Chicago, do antigo professor da Bauhaus László Moholy-Nagy.

No Rio, os estudos experimentais e abstratos de cor, material e forma ensinados no curso preliminar da Bauhaus foram a fonte de muitos, senão todos, os exercícios que Ivan Serpa usou entre 1952 e 1958 num curso de pintura para adultos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio), como é evidenciado no produção precoce de Hélio Oiticica e outros integrantes do Grupo Frente.

As palestras de Bill no MAM do Rio, por ocasião da sua visita, são conhecidas pelo escândalo que sua crítica à arquitetura brasileira causou na comunidade das artes e da arquitetura locais, mas ele falou longamente sobre seus planos para a escola de Ulm, que teria suas primeiras aulas em agosto daquele ano. Deixou claro que ele entendia que a abordagem de Ulm seria um avanço sobre teorias iniciais da Bauhaus, que ele considerava mais rudimentares e menos científicas, como as de Kandínski e Klee.

A interpretação da Bauhaus que Bill apresentou diferiu significativamente dos interesses de Serpa, Mário Pedrosa e todo um grupo de artistas e pensadores, para quem o trabalho de Kandínski, Klee, Kazimír Maliévitch e Piet Mondrian seguiam válidos.

As escolas herdeiras da Bauhaus esvaziaram seu conteúdo político? As escolas de arte no Brasil, assim como as da Alemanha Ocidental e dos EUA no contexto da Guerra Fria, extirparam a Bauhaus de suas associações socialistas e comunistas históricas.

Isso é particularmente verdade no caso do IAC, onde os líderes posicionavam a escola como um treinamento para designers que poderiam agir como especialistas técnicos e resolvedores de problemas para a rápida expansão da economia industrial brasileira.

Eles viam a educação de desenho baseada na Bauhaus como o mais avançado modo de criar designers e viam a escola como um aliado de empresas capitalistas em São Paulo.


Mara Gama é jornalista especializada em design.

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