Sob ameaças de cortes, cursos de humanas podem evitar tragédias, conta autor

Pesquisas de universidades públicas alertaram para práticas que culminaram em desastres de Mariana e Brumadinho

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Henri Acselrad

[RESUMO] Considerados pouco úteis à sociedade pela gestão Bolsonaro, cursos de ciências humanas produziram pesquisas que poderiam ter evitado recentes desastres na mineração.

Autoridades do governo Bolsonaro têm insinuado que a universidade pública brasileira é pouco produtiva —sobretudo a área de ciências humanas, que não formaria cidadãos socialmente úteis nem ofereceria à sociedade um saber relevante.

Nenhum indicador foi apresentado para justificar tais afirmações, mas existem muitos que provam o contrário. Um deles, por exemplo, é o grande número de resultados de pesquisas científicas desenvolvidas na área de ciências humanas a propósito das práticas indevidas de atividades mineradoras em geral e da empresa Vale S.A. em particular. 

Grande parte desses trabalhos acadêmicos permitiu verificar empiricamente, em diversos pontos do território nacional, o caráter impróprio de muitas das práticas da referida empresa, tanto do ponto de vista social como ambiental, em casos com visível desrespeito aos direitos de terceiros e transgressões à lei.

Número considerável desses trabalhos foi desenvolvido muito antes do advento dos grandes desastres ambientais em que a Vale esteve envolvida, seja o rompimento da barragem da Samarco —que acarretou, em novembro de 2015, a morte de 19 pessoas e a contaminação de toda a bacia do rio Doce—, seja o rompimento da barragem da mina do córrego do Feijão, em janeiro de 2019, que resultou em 240 mortos, 32 desaparecidos e na contaminação do rio Paraopeba, um dos afluentes do São Francisco.

Após a verificação dos danos inestimáveis produzidos pelos dois casos, difundiu-se na opinião pública a consideração de terem sido exemplos de “tragédias anunciadas”.

Alertas emitidos por distintas instâncias da sociedade haviam sido desconsiderados por empresas mineradoras e instituições governamentais responsáveis pelos processos de licenciamento, monitoramento e fiscalização de instalações portadoras de risco ambiental e social.

Estudos detalhados de universidades públicas, metodologicamente sistematizados e empiricamente fundamentados, identificaram irregularidades, problematizando seu complexo de causas e justificando alertas desse tipo. Os pesquisadores puderam demonstrar, assim, o exercício de sua liberdade acadêmica assegurada por lei, produzindo um conhecimento autônomo frente a eventuais pressões de poderes políticos e econômicos.

O caráter dito “anunciado” de tais eventos —ou seja, a prévia circulação de advertências a respeito da probabilidade de ocorrência— contrasta com a pequena ou nenhuma repercussão desses estudos junto a órgãos públicos responsáveis pelo controle ambiental das práticas produtivas.

O que merece ser destacado, em particular, é como a produção científica —expressa em um vasto conjunto de dados, de análises de documentos, de observações de campo e de registros da percepção coletiva de populações atingidas ou vivendo sob risco oferecido por projetos de mineração—, caso levada em conta, poderia evitar as gravíssimas consequências sociais e ambientais de tais desastres.

Impressiona, sobretudo, o fato de tais resultados terem sido expostos no espaço público, levados a apresentação em congressos, em defesas públicas de teses e dissertações, assim como publicados em livros, periódicos científicos e, em certos casos, divulgados em órgãos da grande imprensa.

Ao lado do trabalho da escola de Minas de Ouro Preto que indicava, em 2001, o deslocamento do eixo da barragem da mina do córrego do Feijão e sua suscetibilidade a mecanismos de liquefação, pesquisas em ciências sociais aplicadas registraram o temor de comunidades com o risco de rompimento da barragem de rejeitos na Serra da Gandarela, em razão da experiência anterior de terem se sentido impotentes para evitar o vazamento de substâncias tóxicas no rio.

Também registrou-se apreensão quanto a acidentes ambientais e o rebaixamento do lençol freático pela exploração de fosfato em Patrocínio (MG), a falha da fiscalização do órgão ambiental que licencia empreendimentos e a falta de prestação de informações requeridas aos órgãos públicos em Carajás (PA), o recurso à fragmentação do licenciamento como meio de a empresa burlar a classificação do projeto de exploração de minério de ferro no Ribeirão da Prata/Raposos (MG) como de grande potencial poluidor.

Uma série de registros de riscos de outras ordens foram feitos pelos pesquisadores, tais como: disposição inadequada de materiais e despejo ilegal de minério no mar; emissão de poeira contendo substâncias tóxicas associadas a casos de doenças; perda de terras cultivadas e aráveis, destruição de recursos florestais e poluição de recursos hídricos pela abertura de minerodutos em áreas habitadas por comunidades tradicionais; rompimento de mineroduto gerando danos a centenas de famílias quilombolas.

Além de seu interesse propriamente científico, os resultados de tais pesquisas podem servir a usos sociais mais amplos, relativos à construção do interesse público e do bem comum, algo de elevada importância em um momento em que a atividade minerária vem se expandindo em nosso país.

A pesquisa social da universidade pública fornece, assim, um conhecimento fundamentado e disponível para o conjunto dos atores sociais, de modo que possam, quando testemunhas de atos ilícitos ou perigosos, do ponto e vista social ou ambiental, alertar a esfera pública, suscitando a tomada de consciência de seus contemporâneos e das autoridades.


Henri Acselrad é professor do Ippur (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq.

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