Energia nuclear é suja, cara e perigosa, diz ativista veterano

Chico Whitaker aponta que existe estratégia para menosprezar os efeitos da contaminação radioativa

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[RESUMO]  Em resposta a texto do físico Henrique Gomes acerca de desastre na usina ucraniana de Tchernóbil, urbanista refuta a ideia de que a energia nuclear seja a mais segura de todas e aponta estratégia que busca menosprezar os efeitos da contaminação radioativa.

Todos que se interessam pela questão nuclear no Brasil deveriam ler dois artigos interligados, publicados na Ilustríssima de 21 de julho: um de Ilana Feldman, doutora em cinema pela USP, outro de Henrique Gomes, físico e colunista da Folha

O primeiro, mais longo, compara o "estrondoso sucesso" da minissérie "Chernobyl", produção da HBO lançada em maio, ao de uma obra similar exibida em 1978, "Holocausto". 

Segundo Feldman, "Holocausto" abalou o modo como o mundo enxergava o massacre étnico promovido pelos nazistas e deu início a uma nova era na compreensão desses acontecimentos. Hoje, ao mostrar as efetivas dimensões da catástrofe nuclear ocorrida na União Soviética em 1986, "Chernobyl" "poderia vir a adensar os debates em torno do beco sem saída energético em que nos metemos". 

Ao desvelar as causas do acidente, a tese básica da minissérie é o uso da mentira. "Qual o custo da mentira?", pergunta-se seu principal personagem, um grande físico nuclear soviético enviado pelo governo para saber o que realmente ocorrera na Ucrânia. Na França, país mais dependente da energia nuclear no mundo, justifica-se o bloqueio da verdade dizendo que se trata de questão de defesa nacional. 

Nesse artigo denso de informações e reflexões valiosas, escapou uma frase que demonstra, ao qualificar como "limpa" a energia nuclear, o quanto a propaganda da indústria penetrou em nossas cabeças. Essa imagem, que ignora todo o lixo radioativo "sujo" produzido pelas usinas, é de fato um dos grandes mitos difundidos por essa propaganda, como também o são dizer que a nuclear é a forma mais barata e a mais segura de gerar eletricidade. 

Por isso a importância de ler também o texto de Henrique Gomes, totalmente impregnado não somente desses mitos como de muitas outras inverdades que se difundem sobre o do uso da energia nuclear para fins militares ou pacíficos. A inverdade fica evidente para qualquer pessoa que tenha um pouco mais de informações —o que, infelizmente, não é o caso da maioria dos brasileiros.

O texto de Gomes parece ter sido encomendado pelos interessados em remediar o estrago que "Chernobyl" está causando às usinas. Dentro da estratégia do lobby nuclear, ele minimiza ao extremo o número de vítimas do acidente, com a afirmação de que morreram, "lamentavelmente", somente "dois operários e 24 bombeiros".

Terá o autor visto toda a minissérie? Nas informações finais, informa-se que 31 pessoas, segundos dados do governo soviético, morreram na tragédia —número superior ao citado por Gomes, mas ainda muito baixo. Pesquisas apresentam um quadro bem diferente. 

Por exemplo, um longo e detalhado estudo de cientistas bielorrussos e ucranianos, publicado em 2012 nos anais da Academia de Ciências de Nova York, aponta centenas de milhares de mortos, uma vez que a nuvem radioativa que saiu de Tchernóbil cobriu toda a Europa. 

Gomes parece também não levar em conta a maneira como as partículas radiotivas agem em nossos corpos. Afirma que um simples banho bastaria para livrar uma pessoa da radiação —segundo ele, fizeram isso os bombeiros da cidade, o que os teria livrado dos elementos radioativos. Não sei de onde tirou essa informação, que evidentemente não aparece na minissérie. 

Talvez tenha sido informado de que em Goiânia, em 1987, eram logo submetidas a duchas escocesas, em um ginásio da cidade, todas as pessoas identificadas como irradiadas ou contaminadas pelo césio 137. Observe-se que em Goiânia foram retirados, de um aparelho de radioterapia abandonado, somente 19 gramas desse elemento radioativo, e eles causaram mais mortes do que, segundo o autor do artigo, ocorreram em Tchernóbil. 

E foi esse mesmo elemento radioativo, em certamente muitas centenas de quilos, o mais disseminado nos céus da Europa pela nuvem que saiu dessa usina ucraniana.

Pior ainda é a leveza com que Gomes fala da possibilidade de as usinas reciclarem o lixo radioativo de usinas mais antigas. Em primeiro lugar, esse lixo, altamente radioativo, é produzido por usinas, antigas e novas, enquanto estiverem em operação, pois é o próprio combustível utilizado em ambas.

É transferido dos reatores a piscinas, em que deve permanecer por muitos anos mergulhado em água permanentemente refrigerada, até que possa ser delas retirado e escondido como lixo perigoso, "rumo à eternidade" —esse, aliás, é o título ("Into Eternity") de outro filme que deve ser visto pelos interessados, sobre um depósito de lixo radioativo a 500 metros de profundidade em construção na Finlândia. 

A reciclagem pode efetivamente ser feita, mas é extremamente cara e perigosa. Há no mundo só três usinas dedicadas a isso: na França, no Reino Unido e na Rússia, sendo a francesa considerada o equipamento nuclear mais perigoso do mundo, pela quantidade de lixo armazenado.

Seria muito longo comentar todas as outras afirmações do artigo. Concentrando-me nos mitos do nuclear, eu faria uma referência à sua abordagem da questão da segurança das usinas e ao seu silêncio quanto à questão do custo. 

Segundo ele, a segurança da energia nuclear, que "avança a largos passos", era insuficiente em Tchernóbil, que "não tinha nenhum complexo de contenção". Se essa é, portanto, uma exigência de segurança, seria bom que se informasse sobre a usina de Angra 3: pretende-se retomar sua construção sem que o projeto, datado dos anos 1970, seja atualizado para que, entre outras precauções, tenha um "complexo de contenção" que resista a acidentes com explosões.

Essas exigências de segurança, por outro lado, aumentam os custos das usinas nucleares —e, portanto, da eletricidade que produzem— a ponto de provocarem o declínio dessa indústria no mundo. Está deixando de ser um bom negócio, dizem os americanos. Para se salvar, a indústria vem levantando uma nova bandeira: o nuclear é a única alternativa às usinas termoelétricas que usam os combustíveis fósseis, vilões do aquecimento global.

O autor do artigo assume essa ideia, nos alertando a respeito das "mentiras sobre o perigo nuclear", que podem nos impedir de usar essa tecnologia salvadora. Mas em seu artigo não consegue mostrar que estamos errados ao negar que as usinas nucleares sejam a forma mais barata de produzir eletricidade. 


Chico Whitaker, arquiteto e urbanista, é membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB, cofundador do Fórum Social Mundial e da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares.

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