Quem é o jovem ativista e editor que levou Glenn Greenwald a Paraty

Cauê Seignemartin Ameni fundou a editora Autonomia Literária e articula diversas iniciativas de esquerda

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[RESUMO] Quem é Cauê Seignemartin Ameni, o jovem ativista que levou o jornalista Glenn Greenwald a bordo de uma lancha para debate na Flip e que articula diversas iniciativas independentes de esquerda no mercado editorial.

Às 18h46 do dia 12 de julho, um carro encostou no cais pesqueiro de Paraty (RJ). Dali desceu o jornalista americano Glenn Greenwald, escoltado por dois seguranças, companhia constante desde que o site The Intercept Brasil iniciou a publicação da série de reportagens da  Vaza Jato. Como se noticiou, Greenwald foi levado de lancha até o barco da Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes), uma agenda paralela da Flip.

Cruzar o rio Perequê-Açu foi a alternativa encontrada para conduzir o jornalista ao barco pirata sem precisar passar pelo centro histórico de Paraty, onde manifestantes “Je Suis Sergio Moro” esperavam recebê-lo a rojões e protestos. Nos bastidores, quem articulou a operação foi Cauê Seignemartin Ameni, 31, um dos organizadores da Flipei. 

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Cauê Seignemartin Ameni, fundador da editora Autonomia Literária e agora publisher da revista Jacobin no Brasil - Gabriel Cabral/Folhapress

Dias antes, convidados como Marcelo Freixo e outros deputados cancelaram participação na festa pirata devido à votação da reforma da Previdência, em Brasília. Mas perder Greenwald afundaria o barco. 

“Um dos seguranças me ligou, preocupado com uns protestos bolsonaristas, divulgados via WhatsApp. Estava prestes a cancelar a participação do Glenn. Liguei pra um, liguei pra outro organizador e aí retornei com o esquema: ‘ó, a gente pega vocês, deixa as coisas no hotel, leva vocês para o cais lá longe, Glenn sobe num barquinho do tipo tal por causa da maré baixa, depois sobe no barcão, faz a palestra, volta, vai pro hotel, dorme e sete horas da manhã vai embora’”, lembra Cauê, gesticulando bastante para ilustrar os vaivéns. 

“Já fez história: em 17 edições da Flip, é a primeira vez que uma atividade paralela atraiu mais público do que a programação oficial. Uma atividade alvo de um ataque de rojões por uma hora”, diz.

A Flipei é organizada pela editora Autonomia Literária em parceria com outros selos independentes —uma “construção coletiva”, como define o editor paulistano, um jovem alto, de jeans e um surrado tênis New Balance roxo, que roda São Paulo a bordo de uma Vespa preta. 

Cauê cursou, sem concluir, ciências sociais na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Antes, passou uma temporada estudando e trabalhando em fazendas e construções na Europa. “Eu me proletarizei”, brinca. 

Na volta, ingressou na universidade: entre 2010 e 2015, foi um dos líderes do movimento estudantil, editou o jornal do centro acadêmico (o Prainha Herald Tribune) e abriu uma livraria (a Acervo Antropofágico, inicialmente montada por Rafael Limongelli, produtor da Flipei) no campus de Perdizes. 

Na casa dos 20 anos à época, o estudante amarrou três pontas para sua visão do mercado editorial: amigo de jornalistas veteranos da imprensa alternativa (como Antonio Martins, do projeto Outras Palavras, e Alceu Castilho, do De Olho nos Ruralistas), buscava aprender atualidades e estratégias de comunicação; na universidade, estudava os autores clássicos da ciência política; na livraria, identificava demandas dos leitores. Desse nó surgiria a editora Autonomia Literária, em 2015. 

O centro acadêmico da PUC-SP também foi berço político de Hugo Albuquerque e Manuela Beloni, amigos e sócios de Cauê.

Durante uma conversa na livraria universitária, eles notaram que livros de política contemporânea de autores progressistas não estavam sendo traduzidos e publicados no Brasil —sentiram falta, por exemplo, de títulos do filósofo italiano Antonio Negri para discutir novos movimentos, do economista escocês Mark Blyth sobre políticas de austeridade e do jornalista irlandês Patrick Cockburn, especializado no Oriente Médio. “Um descompasso entre oferta e demanda”, lembra Cauê, durante a entrevista à Folha

Com capital inicial de R$ 10 mil, o trio decidiu apostar em um novo selo de esquerda, “mais aberto, menos sectário”, diz Cauê, que define a Autonomia Literária como “uma editora antifascista frente-amplista, de junção da social-democracia com comunistas e anarquistas”.

Publicaram, afinal, “Assembly”, de Negri e Michael Hardt, “Austeridade”, de Blyth, e “A Origem do Estado Islâmico”, de Cockburn —depois, conseguiram direitos para traduzir e publicar “Antifa: O Manual Antifascista”, de Mark Bray, “Como Nasce e Morre o Fascismo”, de Clara Zetkin (1857-1933) e “Como Esmagar o Fascismo”, de Leon Trótski (1879-1940). 

O livro, dizem, é uma arma política. “A missão da editora é simples: levar para a sociedade temas extremamente espinhosos, contribuir para o debate político”, considera Manuela, 28. A ideia, segundo ela, é combater a onda conservadora atual. “É um péssimo momento para nós, mas, para a editora, é a hora certa.”

“Em 2015, as coisas já iam mal no Brasil e no mundo. Justamente por isso criamos [a editora], para abrir um flanco de publicações que pudesse discutir as causas disso. E não só ‘publicar’ no sentido mais estrito, mas criar um processo de produção em rede que faz redes com outras editoras, coletivos, movimentos etc. Nossa guerrilha caminha nesse sentido”, acrescenta Hugo, 31. 

Desde 2016, o QG da guerrilha está instalado num conjunto de três casinhas geminadas na Bela Vista, o Ateliê do Bixiga. O endereço é alugado pela Autonomia Literária, que transformou a área em um coworking, dividido com outras editoras, empreendimentos e coletivos. Entre os habitués estão integrantes do Actantes, Advogados Ativistas, Jornalistas Livres e De Olho nos Ruralistas. 

O clube é de esquerda, mas ninguém confere carteirinhas —a ideia é congregar ativistas e acadêmicos de diferentes linhas.

Segundo Cauê, a inspiração veio da espanhola Traficantes de Sueños, que reunia livraria associativa e projetos de produção política cultural de movimentos alternativos e antiautoritários de Madri na década de 1990. “Fui um ótimo corretor imobiliário”, ele ironiza, enquanto mostra os meandros das casas. A área da Autonomia Literária fica após uma porta sinalizada com o adesivo azul da rua Marielle Franco.

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Adesivo com nome de Marielle Franco é colado em placa na rua da Consolação para lembrar um ano da morte da vereadora carioca. - Avener Prado/Folhapress

“A Origem do Estado Islâmico” (2015), primeiro livro lançado pela casa, vendeu 6.000 exemplares. "Sintomas Mórbidos” (2019), da socióloga e youtuber marxista Sabrina Fernandes, é um dos títulos mais recentes —a primeira impressão, de 5.000 exemplares, esgotou-se em um mês. 

Sabrina, 31, escreve para a revista socialista Jacobin, de Nova York, desde 2014. A socióloga colabora como editora da publicação americana desde 2016 e agora atua como consultora editorial do projeto da Jacobin Brasil.

“Leitores da revista no Brasil já indagavam sobre a possibilidade de uma versão em português, mas não é uma questão apenas de editar. É preciso estrutura. Foi onde a Autonomia Literária entrou com uma proposta”, conta.

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A socióloga Sabrina Fernandes, autora do livro "Sintomas Mórbidos" (Autonomia Literária) e responsável pelo canal de YouTube Tese Onze - Karime Xavier/Folhapress

O site da Jacobin Brasil já está no ar, e a edição impressa, semestral, deve ser lançada em setembro. Ainda há detalhes contratuais a acertar, mas a expectativa, dizem, é privilegiar “o design hype e o texto socialista raiz” da matriz nova-iorquina. 

Os sócios Cauê, Hugo e Manuela constam como publishers da revista. Manuela vive na Europa (entre Itália e Suécia) e de lá gerencia a editora. Não se define politicamente, prefere uma “bricolagem de ideologias”, segundo sua expressão. 

Hugo é advogado e atua em São Paulo. Define-se como “socialista democrático, libertário e autonomista; irremediavelmente comunista, taticamente social democrata e culturalmente anárquico”. 

Já Cauê se declara “um tipo de socialista antropofágico”: “Manu é ninja, administra tudo na nuvem. Hugo é intelectual, estilo enciclopédia ambulante. Eu só sou o cara que vai montando os quebra-cabeças.”

“Nós vimos um gap no mercado, muita demanda e pouca oferta. Sacamos que o negócio de editoras independentes estava florescendo, mas uma das coisas que mais pesam é o aluguel de estruturas nababescas de livrarias, alguns na casa dos R$ 35 mil. Para fugir disso, fizemos a Rizoma, uma livraria nômade num ônibus. Quer dizer, sempre pensamos em alternativas —ônibus, coworking, barco...”, diz Cauê. 

A editora vingou apostando nessas alternativas, no apoio de parceiros e na administração das contas. “A gente até brinca que editora independente está sempre no vermelho, nas contas e na ideologia. A esquerda não leva muito a sério a parte burocrática e, por isso, os negócios afundam às vezes. É preciso planejar para operar projetos com orçamentos pequenos, quer dizer, ter um bom ‘business plan’.” 

Amigos passaram a brincar dizendo que ele se tornou um capitalista. “Eu digo, cara, sabe qual é a diferença entre o mercenário e o pirata? O pirata é anarcocomunista: um anarquista que procura o próprio reino, a liberdade; e um comunista que distribui por igual o butim”, define. 

Cauê não concluiu o curso de ciências sociais pois, segundo seu relato, não queria a assinatura da então reitora Anna Cintra no diploma.

Em 2014, o estudante organizou uma festa, cujo mote era o segundo turno das eleições presidenciais. Em ofício à Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, a reitoria citou nominalmente o aluno, relacionando o evento a “incitação de violência, vandalismo e consumo de drogas”. Ele foi notificado e precisou depor na delegacia de Perdizes. 

Em 2017, o agora editor independente processou a ex-reitora por danos morais. Venceu, e o juiz determinou R$ 8.000 de indenização. Procurada via assessoria de imprensa da PUC-SP, onde ainda é docente, Cintra não retornou o contato.

​Cauê não jubilou e pretende concluir a graduação um dia. Em 7 de agosto, ele e Hugo voltaram ao campus para gravar uma entrevista exclusiva com o intelectual americano Noam Chomsky para a Jacobin Brasil. Para 2020, eles engatilharam a publicação de um livro de Chomsky e coleções da Verso Books, editora anglo-americana fundada pela equipe da New Left Review na década de 1970. 

“É só o começo”, diz Cauê, fechando a agenda deste ano. Na capa preta, a palavra “(r)existir”. 


Juliana Sayuri, jornalista e historiadora, é autora de “Diplô: Paris – Porto Alegre” (2016) e “Paris – Buenos Aires” (2018).

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