[SOBRE O TEXTO] Os três poemas nesta página, inéditos, aparecem no livro “Correspondência: Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto”, lançado nesta semana pela Editora Unesp. Organizado por Marcelo Bortoloti, o livro reúne 68 cartas trocadas entre os dois escritores a partir da década de 1920. O jovem Drummond deixou registrado seus pontos de vista pessoais e literários nas missivas, compondo um interessante diário da época. Enviou também dezenas de poemas para a apreciação do amigo. Alguns foram publicados apenas em jornais, outros permaneceram inéditos. Este material estava guardado na Fundação Casa de Rui Barbosa, que preserva o acervo dos dois autores.
Choque
Tomei o bonde.
Sentei.
Abri o jornal.
Cacete.
Olhei à toa.
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apregoavam utilidades.
Foi então que encontrei
nos vimos
e intimamente nos amamos.
Me olhou só.
Não foi mais do que isso
nem lhe pedi mais.
Não a bolinei.
Não nos despedimos.
Até hoje não tornei a vê-la
não sei se a verei nunca.
Não foi mais do que isso.
Foi muito pouco
e foi tudo.
Orozimbo
Este mulato é sem vergonha como ninguém.
Ele vende bala num tabuleiro coberto com toalha de renda
mas furta nas contas e chupa metade das balas.
No fundo do baú tem um livro velho de modinhas
e na mesa de pau tosco escovas e pomadas cheirosas.
No prego, ao lado duma mulher de cinema o violão é um agente lírico.
Na alma do mulato a música verte nostalgias enormes.
Ele enrabichou a mulata mais dengosa do arrabalde.
Sua voz constipada tem
audácias e eloquências românticas.
Seu punho nervoso nocauta os padeiros atrevidos.
Seu cabelo é todo encarapinhado.
Este mulato já teve cinco vezes na cadeia,
tanto se mete em freges e gosta de beber o seu trago.
Se bebe é insuportável, se não bebe é como se bebesse.
Todos os senhores graves reclamam contra Orozimbo.
Orozimbo
é a pessoa mais importante do arrabalde.
E eu gosto profundamente de Orozimbo.
Religião
Bichinho quer ir s’embora da sala
pra dormir no sol do dia bonito.
Mas a porta da sala está fechada
e ele não pode abrir a porta.
Bichinho planta-se de cócoras muito solene
diante da porta
e põe-se a adorá-la.
Põe-se a adorá-la para que ela se compadeça.
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