Olgária Matos interroga com maestria o porquê de rimar amor e dor

Livro da filósofa é libelo civilizador, que mobiliza repertórios eruditos e articula um pensamento original

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O que seria um “palíndromo filosófico”? O termo serve de título ao novo livro de Olgária Matos. Por defeito de ofício, logo vêm à mente os jogos de tênis filmados por Antonioni (“Blow-up”, 1966) e Godard (“O Demônio das Onze Horas”, 1965; “Vladimir e Rosa”, 1971; “Soft and Hard”, 1985; “JLG por JLG”, 1995).

Se no filme do diretor italiano a cena enigmática de um jogo sem bola apela à transcendência, o franco-suíço arremessa os disparates naqueles quatro filmes (a crítica de Élie Faure sobre Velázquez; o processo dos Oito de Chicago; o debate com Anne-Marie Miéville; a inversão de lado na quadra) para a ordem da imanência.

As jogadas de tênis em Antonioni e Godard deixam suspensa a volta da bola, como se devolver um saque (na curiosa expressão “retornar o serviço”) fosse uma senha para a imagem dialética, a interrupção e a erupção do sentido no retorno do passado por um breve presente.

É justamente no ensaio ao redor de um filme que a palavra aparece no livro de Olgária: “Guy Debord: Theatrum mundi e os palíndromos do tempo”, iluminante análise de “In Girum Imus Nocte et Consumimur Igni” (1978). O filme de Debord propõe uma adivinha em latim medieval: “nós giramos (em círculos) pela noite e somos consumidos pelo fogo”. Nós quem?

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A professora Olgária Matos, em foto de 1997 - Marlene Bergamo/Folhapress

Ué, as mariposas, que ficam dando voltas em volta da lâmpada do cogito para se queimarem. Do brilho efêmero delas —Stan Brakhage fez um filme chamado “Mothlight” (1963), em que colou asas de mariposas na própria película—, Olgária voa até a desaparição dos vaga-lumes na terra desolada de Pasolini, por ele descrita em “L’articolo delle lucciole”, ou “O vazio do poder”.

Há 40 anos, Debord sentenciou: “Meu otimismo baseia-se na certeza de que esta civilização vai desmoronar. Meu pessimismo, em tudo o que ela faz para nos arrastar em sua queda.”

Falando sobre a bossa nova da Paris nos anos 1950, o cineasta-filósofo do Détournement (cuja Internacional Situacionista em 68 glosou a máxima trotskista com o picho “educação permanente”) admite: “Havia ainda um povo que por dez vezes fizera barricadas e pusera reis em fuga. Era um povo que não se deixava comprar por imagens.”

Os vaga-lumes de Pasolini nos anos 1960 foram extintos por uma catástrofe ecológica que, pelo efeito “asa indecisa da borboleta” (Schiller), parece bater em revoada com nossas abelhas destruídas pelos agrotóxicos do tóxico agronegócio.

Para Olgária, se as mariposas, em seu emblema frágil e espectral, “são a memória de uma aparição, elas metaforizam o instante fugidio da ‘iluminação’ política e poética, o détournement, a ruptura”.

Uma instância de resistência e insistência contra a “desrealização, a perda do sentido do real”, nessa sociedade em rede e da informação, do espetáculo e do mercado, em que se obedece mesmo sem receber ordens, em que se vê cada vez menos apesar da saturação de imagens (nas mostras de arte midiáticas, “o valor de exposição da obra” é trocado pelo “valor de culto da exposição e não da obra”, o que gera “uma invisibilidade da própria cultura”, no dizer de D. Arasse).

O livro de Olgária Matos tem um quê do “meteoro caído de um céu desconhecido” (René Char), nesses nossos tempos reificados de rarefação da experiência, alienação e regressão. É um libelo civilizador, que em 15 ensaios mobiliza repertórios eruditos e articula um pensamento original, com “o critério do encanto” de que falava Platão.

Sua “filosofia dos limites” (Camus, Wittgenstein, Derrida) é um chamado de urgência contra a estupidez e a ignorância, já que “o mundo vai se acabar pelo aviltamento dos corações” (Baudelaire). Em “Minima Moralia”, Adorno confessou: “se não temesse incorrer em sentimentalismos, diria que para a formação cultural é requerido o amor; crise de cultura é defeito na capacidade de amar”.

Em “A Guerra de Troia não acontecerá”, a professora da USP e da Unifesp faz coro a Walter Benjamin, lendo a história do mundo como a história do sofrimento do mundo, a tragédia histórica como tragédia da cultura. Em “A escola do silêncio”, Olgária mira as “tiranias da visibilidade”: “a permanente exposição de opiniões e sentimentos por meio da midiatização crescente da vida pela técnica”. Um alerta aos que, céleres, lacram selfies no livro falso do face e do insta.

Por isso, em “Dialética em suspensão”, a autora advoga a espera do tempo oportuno (kairós) contra o timing do gerenciamento burocrático do tempo. E em “Educação para o ócio”, exorta Paul Lafargue (o direito à “preguiça heroica”) para recorrer a Foucault (o tempo livre da "skholé" grega redundou na escola). É providencial a lembrança do ensaio “A preguiça como verdade efetiva do homem” do suprematista Malevitch: “A luta pelo socialismo tem o sentido de mudar as relações de produção para instituir o direito à preguiça”.

Em “Pedras e utopias”, Olgária faz Camus ler Epicuro na pessoa de Alberto Caeiro. A advertência de Camus será sempre pertinente: “Todos os grandes reformadores tentam construir na história o que Shakespeare, Molière, Tolstoi souberam criar —um mundo sempre pronto a satisfazer a fome de liberdade e dignidade que existe no coração de cada homem. Sem dúvida, a beleza não faz revoluções. Mas chega um dia em que as revoluções têm necessidade dela”.

Em “Camus e o Mediterrâneo”, a autora volta ao filósofo do “pensamento sensual” e da “consciência do absurdo”, sendo que, para o autor franco-argelino, “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio insensato do mundo”.

Em “A sociedade à prova de promessa”, a filósofa relê “O sentido antitético das palavras arcaicas” de Freud, onde o filólogo K. Abel mostra que em línguas como egípcio, árabe e latim, os opostos são designados pela mesma palavra ("pharmakon" serve para remédio e veneno). Valendo para o familiar e para o estranho, o "unheimlich" instaura “a inquietante estranheza”.

“Não teria alguma relação impossível com a possibilidade de nomear?”, interroga Derrida, evocado por Olgária em “Utopia e ponto de fuga”.

A autora fundamenta seus argumentos na origem das palavras, projetando de seus radicais etimológicos uma arqueologia do conhecimento (de si, dos outros, do mundo), o que a aproxima da condição de poeta. Olgária convoca Hamlet, “o príncipe do pensamento especulativo”, assombrado por fantasmas de tempos “fora dos gonzos”, aos quais não se furtaria outro príncipe, o Igitur de Mallarmé. “A vida é breve, a arte longa, a experiência difícil, o juízo incerto e a ocasião rara”.

Para Olgária Matos, “o palíndromo desprivatiza o tempo das mercadorias e do capital, é um contradiscurso à continuidade da alienação”, contra as marcas da conclusão. Com maestria, ela demonstra o mister de se interrogar para quê rimar amor e dor, sem fugir das contradições e dos mistérios dos arcanos do inteiramente outro.

Proeza da autora destes “Palíndromos Filosóficos” (pois “só dote dádiva é a vida de todos”, como diz a frase reversível de Marina Wisnik na canção do pai José Miguel), que nos brinda com a felicidade de uma epifania: o júbilo do conhecimento revelado ou reencontrado. Olgária mora na filosofia.

Palíndromos Filosóficos

  • Preço R$ 64,90 (360 págs.)
  • Autor Olgária Matos
  • Editora Editora Unifesp

Carlos Adriano, cineasta, é doutor em cinema pela USP com pós-doutorado em artes, comunicação e semiótica pela PUC-SP.

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